Em desespero, o mago tentou apagar as chamas da barba. Albert baixou a vara e correu lentamente os olhos pela fila de magos. Eles se desviavam do olhar como capim ao vento.
— Mais alguém quer mostrar sentimento de obrigação cívica? — indagou. — De boa vizinhança, talvez? — Ele se endireitou. — Pulhas covardes! Não fundei esta universidade para que vocês pudessem emprestar o cortador de grama! De que vale ter poder se não o exercemos? Se o sujeito não mostra respeito, não deixem sobrar da espelunca nem o suficiente para torrar castanhas, entenderam?
Algo como um leve suspiro surgiu em meio aos magos. Com pesar, os homens olharam o sapo na mão de Rincewind. Na juventude, a maioria deles dominara a arte de ficar terrivelmente bêbado na Tambor. É claro que isso fazia parte do passado, mas o jantar anual do Grêmio dos Mercadores aconteceria no salão superior da Tambor na noite seguinte, e todos os magos do oitavo nível tinham recebido convite. Haveria cisne assado, dois tipos de bolo e muitos brindes fraternos aos “nossos estimados, não, distintos convidados” até que fosse hora de os carregadores da faculdade aparecerem com os carrinhos de mão.
Albert avançou empertigado pela fileira de homens, vez por outra cutucando uma barriga com o bastão. Sua mente dançava. Voltar? Jamais. Aquilo era o poder, aquilo era viver! Ele desafiaria o antigo patrão e cuspiria em seu olho vazio.
Pelo Espelho Fumegante de Grism, vamos ter mudanças por aqui!
Os magos que estudavam história assentiram, constrangidos. Seria voltar ao chão de pedra, a acordar quando ainda estava escuro, a nada de álcool em nenhuma circunstância e à memorização dos verdadeiros nomes de tudo até que o cérebro rangesse.
— O que esse homem está fazendo?
O mago que vinha distraidamente vasculhado seu saco de tabaco deixou o cigarro cair dos dedos trêmulos. A bagana quicou ao atingir o chão, e todos os magos observaram-na rolar com olhos desejosos até Albert dar um passo adiante e esmagá-la.
Albert fez meia-volta. Rincewind, que o vinha seguindo como uma espécie de ajudante extra-oficial, quase deu um encontrão nele.
— Você! Rincewind! Fuma?
— Não, senhor! Vício nojento!
Rincewind evitou o olhar dos superiores. De repente se deu conta de que havia feito mais inimigos para o resto da vida, e não era consolo nenhum saber que isso provavelmente não duraria muito.
— Exatamente! Segure o bastão. Agora, seu bando de relapsos miseráveis, isso vai acabar, ouviram? Amanhã, ao raiar do dia, primeira coisa: três voltas no pátio e depois exercícios físicos aqui! E esse maldito macaco vai para o circo!
— Oook?
Vários dos magos mais velhos fecharam os olhos.
— Mas antes — disse Albert, baixando o tom de voz — vocês vão me fazer o favor de organizar o Rito de AshkEnte. Tenho alguns assuntos pendentes — acrescentou.
Mortimer avançava pelos corredores escuros da pirâmide, com Ysabell correndo em seu encalço. O leve brilho da espada iluminava coisas pavorosas. Offler, o Deus Crocodilo, era um anúncio de cosméticos comparado a alguns dos seres que o povo de Tsort venerava. Nas alcovas ao longo do caminho havia estátuas aparentemente construídas com todas as partes que Deus havia deixado de lado.
— Por que estão aqui? — sussurrou Ysabell.
— Os padres tsorteanos dizem que, quando a pirâmide se fecha, elas ganham vida e rondam os corredores para proteger o corpo do rei — explicou Mort.
— Que superstição horrível!
— Quem falou em superstição? — perguntou Mort, distraído.
— Ficam vivas mesmo?
— Só estou dizendo que, quando os tsorteanos jogam maldição num lugar, não brincam em serviço.
Mortimer dobrou um corredor e, por um momento terrível, Ysabell perdeu-o de vista. A garota saiu correndo pela escuridão e se chocou contra ele. Mortimer estava examinando um pássaro com cabeça de cachorro.
— Argh! — disse ela. — Não lhe dá calafrios?
— Não — respondeu Mortimer, impassível.
— Por que não?
— Porque sou mort.
Ele se virou, e ela viu os olhos brilharem como dois pontinhos azuis.
— Pare com isso!
— EU... NÃO CONSIGO.
Ela tentou rir. Não funcionou.
— Você não é o Morte — objetou ela. — Só está fazendo o trabalho dele.
— Morte é quem quer que faça o trabalho de Morte.
A longa pausa que se seguiu foi interrompida por um gemido mais adiante no corredor escuro. Mortimer se virou e correu para lá.
Ele está certo, pensou Ysabell. Mesmo o jeito de andar... Mas o medo das trevas se sobrepôs a quaisquer conjecturas e ela correu atrás dele, dobrando uma esquina e chegando ao que, sob o brilho intermitente da espada, parecia um misto de tesouro e sótão muito bagunçado.
— Que lugar é esse? — sussurrou ela. — Nunca vi tanta coisa!
— O REI LEVA PARA O ALÉM — informou Mort.
— Com certeza não gosta de viajar com pouca bagagem. Olhe, tem um barco inteiro. E uma banheira de ouro!
— Vai querer ficar limpo quando chegar lá.
— E todas essas estátuas!
— Sinto dizer que essas estátuas são gente. Servos do rei, entende?
O rosto de Ysabell endureceu.
— OS PADRES DÃO VENENO A ELES.
Do outro lado do cômodo abarrotado, veio outro gemido. Mortimer seguiu em direção ao som, avançando por sobre rolos de tapete, pencas de tâmara, caixas de louça e sacos de pedra preciosa. Obviamente o rei não havia conseguido decidir o que deixar para trás e resolvera agir com prudência e levar tudo.
— SÓ QUE NEM SEMPRE FUNCIONA RÁPIDO — acrescentou Mort, com tristeza.
Aos trancos, Ysabell seguiu-o e espiou por sobre a canoa, deparando-se com uma menina deitada numa pilha de cobertores. Ela vestia calça de algodão, um colete feito com material insuficiente e pulseiras bastantes para atracar um navio de bom tamanho. Havia uma mancha verde em torno da boca.
— Dói? — perguntou Ysabell, em voz baixa.
— Não. Eles acham que isso vai levá-los ao paraíso.
— E vai?
— Quem sabe? Talvez.
Mortimer tirou a ampulheta do bolso e inspecionou-a sob o brilho da espada. Pareceu contar para si mesmo e então, com um movimento súbito, jogou a ampulheta por sobre o ombro e trouxe a espada abaixo com a outra mão.
A sombra da menina sentou e se espreguiçou, com um leve tinido das jóias espectrais. Ela viu Mortimer e fez uma reverência com a cabeça.
— Meu senhor!
— NÃO SOU SENHOR DE NINGUÉM — rebateu Mort. — AGORA VÁ PARA ONDE QUER QUE ACREDITE ESTAR INDO.
— Vou ser concubina na paradisíaca corte do rei Zetesphut, que vai viver para sempre entre as estrelas — afirmou ela.
— Você não precisa ser isso — retrucou Ysabell. De olhos arregalados, a menina se virou para ela.
— Ah, preciso, sim. Estudei para isso — explicou, enquanto desaparecia de vista. — Até agora só consegui ser escrava.
Ela sumiu. Ysabell continuou olhando com desaprovação para o lugar em que a garota estivera.
— Bem — disse, afinal. — Viu o que ela estava usando?
— Vamos sair daqui.
— Mas não pode ser verdade essa história de o rei Sei-lá-Quem viver entre as estrelas — resmungou ela, enquanto procuravam à saída do quarto entupido. — Lá não tem nada.
— É DIFÍCIL EXPLICAR — considerou Mort. — ELE VAI VIVER ENTRE AS ESTRELAS NA PRÓPRIA CABEÇA.
— Com os escravos?
— SE É O QUE ACREDITAM SER.
— Não é justo.
— NÃO TEM JUSTIÇA — argumentou Mort. — SÓ NÓS.
Os dois se apressaram pelos corredores de almas expectantes e já estavam quase correndo quando irromperam no ar noturno do deserto. Arfante, Ysabell se encostou na parede de pedra.