Mort não estava sem fôlego.
Não estava respirando.
— VOU LEVÁ-LA AONDE QUISER — disse. — E VOCÊ FICA POR LÁ.
— Mas achei que quisesse salvar a princesa!
Mort sacudiu a cabeça.
— NÃO TENHO ESCOLHA. NÃO EXISTEM ESCOLHAS.
Ela correu adiante e agarrou-o pelo braço. Com suavidade, ele afastou a mão dela.
— Terminei o aprendizado.
— Está tudo na sua cabeça! — gritou Ysabell. — Você é o que que é!
Ela se deteve e olhou para baixo. A areia em volta dos pés de Mortimer estava começando a formar pequenos jatos e retorcidos demônios de areia.
Ouviu-se um estalo, e o ar ganhou uma textura viscosa. Mort ficou apreensivo.
— Alguém está realizando o Rito de Ash...
Um vento vindo como martelo do céu soprou a areia para uma espécie de cratera. Surgiu um chiado baixo e um cheiro de estanho aquecido.
Girando como em sonho, sozinho no centro tranqüilo do redemoinho, Mortimer olhou o vento de areia ao redor. Raios cortavam o turbilhão. Dentro de sua própria mente, tentava se libertar, mas algo o havia prendido, e ele não conseguiu resistir mais do que uma agulha de bússola conseguiria ignorar a pressão de apontar para o Centro.
Por fim, achou o que vinha procurando. Era um vão de porta cercado por luz octarina, que levava a um túnel curto. Do outro lado, havia vultos chamando por ele.
— JÁ VOU — disse, e então se virou, ao ouvir um barulho repentino atrás de si.
Setenta quilos de mulher lhe acertaram o peito, derrubando-o. Mort caiu com Ysabell a se ajoelhar sobre ele, segurando-o pelos braços.
— DEIXE-ME IR — ordenou ele. — FUI EVOCADO.
— Não você, idiota!
Ela fitou as poças azuis desprovidas de pupila. Era como olhar um túnel em movimento.
Mortimer dobrou o corpo e berrou uma praga tão antiga e terrível que, naquele campo mágico intenso, ela ganhou forma, bateu asas e voou para longe. Uma tempestade caiu sobre as dunas de areia.
Os olhos dele a arrastavam. Ela desviou o olhar antes de cair como pedra num poço de luz azul.
— EU EXIJO.
A voz de Mort poderia abrir buracos em rocha.
— Há anos papai tenta esse tom de voz comigo — disse ela, tranqüilamente. — Em geral, quando quer que eu arrume o quarto. Nunca funciona. — Mort soltou outro esconjuro, que caiu no chão e tentou se enfiar na areia.
— A DOR...
— Está tudo na sua cabeça — insistiu ela, lutando contra a força que tentava arrastá-los para o cintilante vão de porta. — Você não é o Morte. É só o Mort. Você é o que eu acho que é.
Em meio ao azulão dos olhos dele surgiram dois pontinhos castanhos, crescendo com enorme velocidade.
A tempestade à volta se acentuou. Mortimer soltou um grito.
Em poucas palavras, o Rito de AshkEnte evoca Morte. Os alunos do oculto sabem que é possível realizar o feitiço com umas poucas palavras mágicas, três pequenas lascas de madeira e quatro centímetros cúbicos de sangue de rato, mas nenhum mago que valha seu chapéu pontudo sequer sonharia em fazer algo tão simples. Eles sabem que, se a magia não envolver grandes velas amarelas, muitos incensos raros, círculos desenhados no chão com oito cores diferentes de giz e alguns caldeirões espalhados pelo lugar, então nem é digna de se cogitar.
Os oito magos a postos no grande octograma ritual se embalavam e cantavam, com os braços erguidos de lado, a tocar as mãos dos companheiros.
Mas alguma coisa estava dando errado. É verdade que uma névoa havia se formado no centro do octograma, mas ela se contorcia, recusando-se a firmar.
— Mais força! — gritou Albert. — Joguem mais força!
Por um instante, surgiu um vulto na fumaça, de manto negro, segurando uma espada reluzente. Albert praguejou ao entrever o rosto pálido sob o capuz: não era pálido o bastante.
— Não! — gritou, entrando no octograma e batendo no vulto tremeluzente. — Você, não. Você, não...
E, no distante Tsort, Ysabell esqueceu que era dama, fechou a mão, apertou os olhos e deu um soco no queixo de Mortimer. O mundo à volta explodiu...
Na cozinha da Casa das Costelas de Harga, a frigideira caiu no chão, afugentando os gatos...
No salão da Universidade Invisível, tudo aconteceu de uma só vez[9].
A tremenda força que os magos vinham depositando no redemoinho de sombras de repente ganhou nitidez. Como a relutante rolha de uma garrafa, como o catchup a cair do vidro do Infinito, Morte pousou no octograma e praguejou.
Tarde demais Albert se deu conta de que estava dentro do anel encantado e tentou se afastar para a beira. Mas os dedos esqueléticos lhe pegaram a ponta do manto.
Os magos que ainda se encontravam de pé — e conscientes — ficaram um tanto surpresos ao ver que Morte estava usando avental e segurando um gatinho.
— Por que você tinha DE ESTRAGAR TUDO?
— Estragar tudo? O senhor já viu o que o garoto fez? — rebateu Albert, ainda tentando alcançar a beira do anel.
Morte levantou a caveira e cheirou o ar.
O ruído se sobrepôs a todos os outros sons do salão e levou-os ao silêncio.
Era o tipo de ruído que se ouve às margens crepusculares dos sonhos, desses dos quais acordamos suando frio de horror. Era a fungadela atrás da porta do medo. Era como a fungadela de um porco-espinho, mas nesse caso trata-se de uma espécie de porco-espinho que achata caminhões. Era o tipo de ruído que não gostaríamos de ouvir duas vezes, que não gostaríamos de ouvir uma vez.
Devagar, Morte se endireitou.
— É ASSIM QUE ELE RETRIBUI MINHA GENEROSIDADE? ROUBANDO MINHA FILHA, INSULTANDO OS EMPREGADOS E PONDO EM RISCO A TRAMA DA REALIDADE POR UM CAPRICHO PESSOAL? AH, COMO FUI BURRO!
— Patrão, se o senhor puder soltar o meu manto... — começou Albert, e se deu conta do tom de súplica que antes não existia em sua voz.
Morte ignorou-o. Estalou os dedos como castanholas, e o avental amarrado à cintura explodiu em chamas breves. O gatinho, entretanto, ele botou no chão com bastante cuidado, afastando-o com o pé.
— ENTÃO NÃO DEI A ELE A MAIOR DAS OPORTUNIDADES?
— Exatamente, senhor. E agora se puder largar...
— TREINAMENTO... UMA CARREIRA BEM ESTRUTURADA... PERSPECTIVA... O EMPREGO DE SUA VIDA...
— Isso mesmo. E se o senhor puder...
A mudança na voz de Albert era total. As trombetas da autoridade tinham virado flautins de súplica. Ele parecia realmente apavorado, mas conseguiu chamar a atenção de Rincewind e sussurrar:
— O BASTÃO! JOGUE O MEU BASTÃO! QUANDO ELE ESTÁ NO CÍRCULO, NÃO É INVENCÍVEL! PASSE O BASTÃO, E PODEREI ME LIBERTAR!
Rincewind disse:
— Perdão?
— Ah, é minha culpa por ceder a essas fraquezas do que por falta de palavra melhor devo chamar de carne!
— O bastão, imbecil, o bastão! — irritou-se Albert.
— O quê?
— Obrigado, meu servo, por me prevenir — agradeceu Morte.
— NÃO PERCAMOS MAIS TEMPO.
— O bast...! O bast...!
Houve uma implosão e um fluxo de ar. Por um instante, as chamas das velas se estenderam como linhas de fogo, depois apagaram.
O tempo passou.
Então, de algum lugar do chão, veio a voz do tesoureiro:
— Rincewind, foi muito indelicado da sua parte perder o bastão dele assim. Lembre-me de puni-lo severamente um dia desses. Alguém tem luz?
— Não sei o que aconteceu! Só deixei a vara apoiada ali na pilastra e...
— Oook.
— Ah — soltou Rincewind.
— Banana extra, esse macaco... — reclamou o tesoureiro, com indiferença.
Alguém riscou um fósforo e conseguiu acender uma vela. Os magos começaram a se levantar.
9
Isso não é exatamente verdade. Em geral, os filósofos concordam que o tempo mais curto para que algo aconteça é de um bilhão de anos.