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— Bem, foi uma lição para todos nós — continuou o tesoureiro, batendo a poeira e a cera do manto.

Ele olhou para cima, esperando ver a estátua de Alberto Malich de volta ao pedestal.

— É evidente que até as estátuas têm sentimentos — afirmou. — Quando eu era calouro, lembro-me de escrever meu nome na... bem, não importa. A questão é a seguinte: aqui e agora proponho substituirmos a estátua.

A sugestão foi recebida com um silêncio mortal.

— Digamos que uma cópia em ouro. Devidamente adornada com pedras preciosas, como condiz ao grande fundador — prosseguiu ele, inflamado. — E para termos certeza de que nenhum aluno venha a destruí-la, vamos erigi-la no mais distante dos porões. E então trancar a porta — acrescentou.

Vários magos começaram a se animar.

— E jogar fora a chave? — propôs Rincewind.

— E soldar a porta — concordou o tesoureiro.

Ele havia acabado de se lembrar da Tambor Consertado. Pensou por um momento e também se lembrou da regulamentação de exercícios físicos.

— E empedrar a porta — sugeriu. Houve uma saraivada de palmas.

— E jogar fora o pedreiro! — alegrou-se Rincewind, achando que já estava pegando o jeito do negócio. — o tesoureiro o encarou, mal-humorado.

— Não precisa se animar! — disse.

No silêncio, uma duna de areia maior do que as outras se curvou e então tombou para revelar Pituco, soprando areia das narinas e sacudindo a crina.

Mortimer abriu os olhos.

Deveria existir uma palavra para descrever o breve instante em que acabamos de acordar, quando a mente ainda se encontra cheia de um nada cálido e rosado. Ficamos completamente esvaziados de pensamentos, exceto pela crescente suspeita de que vindo em nossa direção, como um saco de areia molhada num beco escuro, estão todas as coisas das quais preferiríamos não nos lembrar e que se resumem ao fato de que o único alívio no terrível futuro é a certeza de que ele será curto.

Mortimer se sentou e pôs as mãos no alto da cabeça, a fim de fazê-la parar de rodar.

A areia ao lado se ergueu, e Ysabell também se sentou. O rosto estava sujo do pó da pirâmide e o cabelo se encontrava cheio de areia. Alguns fios pareciam encrespados na ponta. Apática, ela o encarou.

— Você bateu em mim? — indagou ele, examinando o queixo.

— Bati.

— Ah.

Ele olhou para cima, como se o céu pudesse lembrá-lo das coisas. Recordou que era preciso estar em algum lugar. Então se lembrou de outra coisa.

— Obrigado — disse.

— Sempre às ordens.

Ysabell se pôs de pé e tentou tirar o pó e as teias de aranha do vestido.

— Vamos salvar sua princesa? — perguntou ela, hesitante.

A realidade interior e pessoal de Mortimer sobreveio. Ele se levantou com um gemido abafado, viu fogos de artifício azuis espocarem diante dos olhos e caiu novamente. Ysabell pegou-o por baixo dos ombros e suspendeu-o outra vez.

— Vamos ao rio — disse. — Beber água vai nos fazer bem.

— O que aconteceu comigo?

Ela encolheu os ombros o melhor que pôde enquanto sustentava o peso dele.

— Alguém usou o Rito de AshkEnte. Papai detesta, diz que só o evocam nas horas mais inconvenientes. A sua parte que era Morte foi e você ficou para trás. Eu acho. Pelo menos voltou a falar com a própria voz.

— Que horas são?

— A que horas você disse que os padres fecham a pirâmide?

Mortimer voltou os olhos marejados para o sepulcro do rei.

De fato, alguns dedos iluminados à vela mexiam na porta. De acordo com a lenda, logo os guardiães ganhariam vida e começariam a infindável patrulha.

Ele sabia que sim. De repente, lembrou-se de todo o conhecimento. Lembrou-se de se sentir frio como gelo e ilimitado feito o céu noturno. Lembrou-se de ser convocado à existência no instante em que a primeira criatura nascera, na certeza de que sobreviveria à vida até que o último ser do universo sucumbisse, quando então, metaforicamente falando, seria sua função pôr as cadeiras sobre as mesas e apagar todas as luzes.

Lembrou-se da solidão.

— Não me deixe — pediu, apreensivo.

— Eu estou aqui — assegurou ela. — Pelo tempo que precisar de mim.

— É meia-noite — disse ele, desanimado, ajoelhando-se às margens do Rio Tsort e baixando a cabeça dolorida até a água.

Do lado, surgiu um barulho como de uma banheira se esvaziando. Pituco estava bebendo.

— Quer dizer que é tarde demais?

— Isso mesmo.

— Sinto muito. Eu gostaria de poder fazer alguma coisa.

— Mas não pode.

— Pelo menos você cumpriu sua promessa ao Albert.

— É — assentiu Mort, com amargor. — Pelo menos fiz isso. Quase toda a distância de um lado a outro do Disco... Deveria existir uma palavra para descrever a microscópica centelha de esperança que não ousamos nutrir com medo de que o simples ato de reconhecê-la a faça desaparecer, como tentar olhar um fóton. Só podemos passar por ela, olhando de soslaio, esperando que cresça o suficiente para enfrentar o mundo.

Ele suspendeu a cabeça encharcada e olhou em direção ao horizonte crepuscular tentando lembrar o grande modelo do Disco no gabinete de Morte sem deixar o mundo saber o que vinha tramando.

Nessas horas, parece que o acaso é tão fragilmente equilibrado que o mero pensamento pode estragar tudo.

Ele se norteou pelos finos raios das luzes do Centro a dançar contra as estrelas e fez uma estimativa acertada de que Sto Lat ficava... lá...

— Meia-noite — gritou.

— Já passou da meia-noite — advertiu Ysabell.

Mortimer se levantou, tentando não deixar a alegria irradiar dele como um farol, e pegou os arreios de Pituco.

— Vamos — chamou. — Não temos muito tempo.

— Do que está falando?

Mortimer estendeu o braço para ajudá-la a sentar atrás dele. Foi um ato generoso, mas quase o fez cair da sela. Com delicadeza, Ysabell empurrou-o de volta e montou sozinha. Ao sentir o entusiasmo de Mortimer, Pituco avançou de lado, relinchou e bateu as patas na areia.

— Eu perguntei do que está falando.

Mortimer virou o cavalo para o remoto brilho crepuscular.

— Da velocidade da noite — respondeu.

Cortabem esticou a cabeça por sobre as ameias do palácio e gemeu. A interface estava a apenas uma rua de distância, notadamente visível em octarina, e ele nem teve de imaginar o chiado. Pôde ouvir o barulho elétrico e desagradável produzido à medida que partículas aleatórias de possibilidade atingiam a interface e soltavam sua energia como som. Ao avançar pela rua, o muro perolado engolia bandeiras, tochas e a multidão à espera, deixando apenas ruas escuras. Em algum lugar ao longe, pensou Cortabem, estou dormindo na minha cama e nada disso aconteceu. Sorte minha!

Ele se agachou, desceu a escada de mão até o piso da torre e voltou ao salão principal com as abas do manto esvoaçando ao redor dos tornozelos. Passou pelo pequeno portão dos fundos e pediu aos guardas para trancá-lo, então suspendeu as abas mais uma vez e disparou por um corredor lateral para que os convidados não o notassem.

O salão estava iluminado por milhares de velas e abarrotado de autoridades da Planície Sto, a maioria das quais ligeiramente incerta do motivo de se encontrar ali. E, obviamente, havia o elefante.

Foi o elefante que convenceu Cortabem de que ele havia fugido às raias da sanidade, mas parecera uma ótima idéia algumas horas antes, quando seu desespero em relação à fraca visão do sumo sacerdote lhe trouxe a recordação de que um moinho na fronteira da cidade possuía o dito animal para a carga mais pesada. O paquiderme era velho, tinha artrite e temperamento instável, mas possuía uma importante vantagem como vítima de sacrifício: o sumo sacerdote com certeza o enxergaria.