— Claro que não. — Deixou sua mão repousar carinhosamente sobre a dela por um momento. — Pensei em você o tempo todo, Liliath.
— Acredito muito.
— E mal posso esperar pelo jantar.
— Isto soa muito mais plausível.
De repente, a chuva ficou ainda mais forte. Grandes bátegas atingiram o para-brisa e Liliath teve que se esforçar para manter o controle do veículo. Estavam passando pelo Panteão, a fabulosa Catedral de Todos os Deuses. Não parecia tão fabulosa no momento, com filetes de água escorrendo pela fachada de tijolos.
O recrudescimento da chuva fez o céu escurecer. Sheerin se encolheu, fugindo da escuridão da rua, e procurou conforto nas luzes do painel de instrumentos. Ele não queria mais ficar dentro do carro. Precisava de espaço aberto, com ou sem tempestade. Mas aquilo era loucura. Ficaria ensopado no instante em que pusesse os pés fora do veículo. As poças eram tão fundas que corria o risco de se afogar.
Pense em coisas alegres, disse para si mesmo. Pense em coisas claras. Pense no sol, no brilho dourado de Onos, na luz cálida de Patru e Trey, ou mesmo na luz fria de Sitha e Tano, na luz avermelhada de Dovim. Pense no jantar desta noite. Liliath preparou um banquete para comemorar a sua volta. Ela é uma excelente cozinheira.
Percebeu que ainda não estava com fome. Não em um dia triste e cinzento como aquele. Lá fora estava tão escuro… tão escuro…
Mas Liliath se orgulhava muito dos seus dotes culinários. Especialmente quando cozinhava para ele. Comeria tudo que ela pusesse em seu prato, decidiu Sheerin. Mesmo que lhe custasse algum esforço. Que ideia estranha, pensou. Sheerin, o grande gourmet, tendo que se forçar a comer!
Seu riso chamou a atenção de Liliath.
— Qual é a graça?
— Eu… hum… acho engraçado ver Athor de volta à pesquisa — disse Sheerin em disparada. — Passou tanto tempo fazendo trabalhos puramente administrativos, satisfeito em sua posição de Imperador da Astronomia! Vou ter que falar logo com Beenay. Que será que está acontecendo no Observatório?
12
Era o terceiro dia de Siferra 89 desde que voltara à Universidade de Saro, e ainda não parara de chover. Um contraste quase agradável ao clima seco e agressivo da península da Sagikan.
Não via chuva há tanto tempo, que a ideia de que a água podia cair do céu a tomou quase de surpresa.
Em Sagikan, cada gota de água era um tesouro. O uso, do líquido era racionado e sempre que possível a água era reciclada. Agora, ali estava, caindo do céu com se viesse de um imenso reservatório que nunca iria secar. Siferra sentiu vontade de tirar toda a roupa e sair correndo pelo gramado do campus, deixando a água escorrer pelo corpo em uma deliciosa torrente sem fim, removendo os últimos resíduos da areia infernal do deserto.
Os alunos ficariam surpresos. A séria, distante, pouco romântica professora de arqueologia, Siferra 89, correndo nua na chuva! Quase que valia a pena fazer isso, só para ver a cara de surpresa dos estudantes aparecendo em todas as janelas: da universidade para apreciar a cena.
Melhor deixar para lá, pensou Siferra. Não faz o meu gênero.
Além disso, tinha muito que fazer. Não perdera tempo para começar a trabalhar. A maior parte dos artefatos que desenterrara em Beklimot tinham sido despachados em um navio de carga e levariam algumas semanas para chegar. Mas havia mapas para arrumar, esboços para terminar, fotografias de Balik para examinar, amostras de solo para preparar para serem analisadas em laboratório, um milhão de coisas para fazer. Além disso, queria discutir as tabuinhas de Thombo com Mudrin 505, do departamento de paleografia.
As tabuinhas de Thombo! A descoberta das descobertas, o maior achado em um ano e meio de buscas! Pelo menos, esta era a sua opinião. Naturalmente, tudo dependeria do que estivesse escrito nelas. Estava ansiosa para que Mudrin começasse a trabalhar na tradução. As tabuinhas eram, na pior das hipóteses, objetos fascinantes, entretanto, podiam ser muito mais. Se suas suspeitas se concretizassem, elas poderiam revolucionar todo o estudo do mundo pré-histórico. Era por isso que não confiara nos navios cargueiros, e transportara as tabuinhas pessoalmente, na própria bagagem.
Alguém bateu à porta.
— Siferra? Siferra, você está aí?
— Entre, Balik.
O estratigrafo de ombros largos estava ensopado.
— Esta maldita chuva — murmurou, sacudindo-se. Fiquei todo molhado só de vir do quarteirão da Biblioteca Uland até aqui.
— Estou adorando a chuva — disse Siferra. — Espero que não pare tão cedo. Passei meses no deserto, com os olhos sujos de areia o tempo todo, poeira na garganta, morrendo de calor e secura… não, deixe chover, Balik!
— É, mas estou vendo que você não se molhou. É muito mais fácil gostar de chuva quando se está em um lugar abrigado somente observando-a… Brincando de novo com suas tabuinhas, hein?
Ele apontou para as seis grossas tabuinhas de superfície irregular e de barro vermelho que Siferra havia arrumado na escrivaninha em dois grupos de três, as quadradas em uma carreira e as retangulares em outra carreira abaixo.
— Não são lindas? — disse Siferra, exultante. — Não consigo esquecê-las. Tenho a impressão de que se ficar olhando muito tempo, vou acabar compreendendo o que está escrito nelas.
Balik aproximou-se e sacudiu a cabeça.
— Para mim, não passam de arranhões.
— Pare com isso! Já identifiquei distintos padrões de palavras. E não sou nenhuma perita… Está vendo este grupo de seis caracteres? Está repetido ali. E esses três, com os cantos arredondados…
— Já mostrou a Mudrin?
— Ainda não. Pedi a ele para passar aqui daqui a pouco.
— Sabe que andam falando da sua descoberta, não sabe? Das cidades de Thombo, uma por cima da outra?
Siferra olhou para ele, surpresa.
— O quê? Quem…
— Um dos alunos — explicou Balik. — Não sei qual foi. Desconfio de Veloran, mas Eilis acha que foi Sten. Suponho que era inevitável. Você não concorda?
— Pedi-lhes para não dizer nada…
— Claro, mas eles são crianças, Siferra, o mais velho tem dezenove anos, e é sua primeira expedição arqueológica! A expedição descobre uma coisa extraordinária, sete cidades pré-históricas, de que ninguém tinha ouvido falar, uma por cima da outra, a mais velha com milhares de anos de idade…
— São nove cidades, Balik.
— Sete, nove, não faz diferença. E eu acho que são sete — insistiu Balik, com um sorriso.
— Eu sei o que você pensa. E está errado. Mas quem está falando a respeito? No departamento, quero dizer.
— Hilliko. Brangin, também. Ouvi quando conversavam esta manhã, na sala dos professores. Estão muito céticos, é bom que você saiba. Extremamente céticos. Acham impossível que haja uma cidade mais antiga que Beklimot naquela região, quanto mais nove, ou sete, ou seja qual for o número de cidades que você descobriu.
— Eles não viram as fotografias. Não viram os mapas. Não viram as tabuinhas. Não viram nada. E já têm uma opinião formada. — Os olhos de Siferra brilhavam de raiva. — O que é que eles sabem? Algum deles já esteve na península de Sagikan? Algum deles já esteve em Beklimot, mesmo como turista? E têm coragem de pôr em dúvida uma descoberta que ainda não foi publicada, que ainda não foi nem mesmo discutida informalmente dentro do departamento!
— Siferra…
— Sinto vontade de esfolar aqueles dois! E Veloran e Sten, também. Deviam ter mantido a boca fechada! Por que tinham que quebrar o sigilo? Mas eu vou mostrar a eles. Vou chamá-los aqui e descobrir exatamente quem foi que deixou a história vazar. E se um deles pensa que vai conseguir o título de doutor por esta universidade…