— Por favor, Siferra! — protestou Balik. — Você está se aborrecendo à toa.
— À toa! Estragaram tudo! Eu tinha que ser a primeira a…
— Ninguém estragou nada. Tudo vai continuar a ser apenas um boato até você estar preparada para sua exposição preliminar. Quanto a Veloran e Sten, não temos certeza se foi um dos dois, e mesmo que tenha sido, não se esqueça de que você já teve a idade deles.
— É verdade — concordou Siferra. — Três eras geológicas atrás.
— Não diga bobagens. Você é mais moça do que eu, e não me considero nenhum velho.
Siferra fez que sim, com indiferença. Olhou pela janela. De repente, a chuva não parecia agradável. Estava tudo escuro lá fora, opressivamente escuro.
— Mesmo assim, saber que nossa descoberta está sendo contestada, antes mesmo de ser publicada…
— Isso não é de admirar, Siferra. O que encontramos naquela colina vai fazer balançar a vida de muita gente… não só no nosso departamento, mas também nos departamentos de história, filosofia e até mesmo teologia. E pode apostar que eles lutarão até o fim para defender os pontos de vista tradicionais a respeito da história de nossa civilização. Você não faria o mesmo, se alguém aparecesse com uma ideia radical, totalmente em desacordo com tudo em que você sempre acreditou? Seja realista, Siferra. Sabíamos desde o começo que essa coisa daria muito que falar.
— Eu sei. Só que não esperava que acontecesse tão depressa. Ainda nem acabei de desfazer as malas.
— É esse o problema. Você voltou ao trabalho depressa demais. Devia ter descansado um pouco da viagem. Ei, tive uma ideia. Nós dois só começamos a dar aula daqui a duas semanas. Por que não fugimos da chuva e passamos o fim de semana juntos em algum lugar? Que tal ir a Jonglor para ver a Exposição? Ontem eu estava conversando com Sheerin e ele disse-me que está uma verdadeira…
A arqueóloga olhou para Balik, admirada.
— O quê?
— Estou convidando você a passar o fim de semana comigo.
— Isto é algum tipo de proposta amorosa, Balik?
— Você pode considerar assim, se quiser. Que há de tão incrível nisso? Não somos exatamente um par de estranhos. Nós nos conhecemos desde o tempo em que éramos estudantes. Acabamos de passar um ano e meio juntos no deserto.
— Juntos? Estávamos na mesma expedição, mas você tinha a sua tenda e eu, a minha. Nunca houve nada entre nós. E agora, sem mais nem menos…
Balik parecia desapontado.
— Não estou pedindo a você para casar comigo, Siferra. Apenas sugeri uma curta visita à Exposição de Jonglor, cinco ou seis dias, um pouco de sol, um hotel decente em vez de uma tenda no meio do deserto, jantares à luz de velas regados a vinho… — Ele abriu os braços, irritado. — Você está me fazendo sentir como um colegial, Siferra.
— Está agindo como um. Nossa relação sempre foi puramente profissional, Balik. Vamos mantê-la assim, está bem?
Ele abriu a boca para responder, mudou de ideia e ficou olhando para a arqueóloga, de cara amarrada. O silêncio começou a se tornar constrangedor.
A cabeça de Siferra estava latejando. Tudo aquilo era inesperado e desagradáveclass="underline" a notícia de que outros membros do departamento já estavam discutindo a sua descoberta, a tentativa desajeitada de Balik de seduzi-la. Seduzi-la? Bem, pelo menos de criar uma atmosfera romântica. Parecia tão frustrado e surpreso com a sua reação!
Imaginou se teria feito sem querer alguma coisa para encorajá-lo. Não. Não. Era pouco provável. Não tinha nenhum interesse em ir para o norte com Balik, ou a qualquer outro, e beber vinho em restaurantes românticos. Tinha o seu trabalho. Era o bastante. Há mais de vinte anos, desde a juventude, os homens a assediavam, diziam que era bonita, inteligente, fascinante. Devia se sentir grata por isso. Muito melhor do que se a achassem feia e desinteressante. Mas não estava interessada em homens. Nunca havia estado. Não queria estar. Que péssima hora Balik havia escolhido para criar aquele clima de constrangimento entre os dois. Ainda tinham que organizar todo o material recolhido em Beklimot. E tinham que analisá-lo juntos, trabalhando lado a lado…
Alguém bateu na porta. Ela se sentiu imensamente grata pela interrupção.
— Quem é?
— Mudrin 505 — respondeu uma voz trêmula.
— Entre, por favor.
— Já vou indo — disse Balik.
— Não vá. Ele veio para ver as tabuinhas. Elas são suas também.
— Siferra, sinto muito se…
— Esqueça. Esqueça!
Mudrin entrou, caminhando com dificuldade. Era um homem frágil, ressequido, de quase oitenta anos, idade mais do que suficiente para se aposentar, mas que continuava a pertencer ao corpo docente, embora não desse mais aulas, para continuar seus estudos paleográficos. Os olhos verde acinzentados, sempre úmidos depois de uma vida de examinar antigos manuscritos quase ilegíveis, se escondiam atrás de grossos óculos. Entretanto, Siferra sabia que a aparência daqueles olhos era enganadora: eram os olhos mais penetrantes que jamais havia conhecido, pelo menos no que dizia respeito a escritos do passado.
— Então aqui estão as famosas tabuinhas — disse Mudrin. — Desde que você me falou a respeito, não consigo pensar em outra coisa — declarou, mas sem fazer nenhuma menção de examiná-los. — Pode me dizer mais alguma coisa sobre a forma como as encontrou?
— Aqui está a fotografia que Balik tirou do local — disse Siferra, passando-lhe uma ampliação. — A colina de Thombo, o velho depósito de lixo ao sul de Beklimot. Depois que a tempestade de areia passou, foi isso que nós vimos. Fizemos uma escavação que ia daqui até aqui… e depois, até aqui.. e deixamos tudo aberto. Está vendo a linha escura?
— São cinzas? — perguntou Mudrin.
— Exatamente. A cidade inteira deve ter pegado fogo Mais para baixo, podemos ver uma segunda série de alicerces, e uma segunda linha onde o fogo chegou. E se o senhor olhar aqui, e aqui…
Mudrin ficou olhando para a fotografia durante muito tempo.
— Que é que nós temos aqui? Oito ciclos sucessivos de colonização?
— Sete — resmungou Balik.
— Nove, penso eu — corrigiu Siferra, secamente. — Mas concordo que fica muito difícil separar as cidades quando chegamos perto da base da colina. Vamos precisar de análise química e testes radiográficos. É indiscutível, porém, que houve uma série de incêndios, e que os habitantes reconstruíram a cidade depois de cada um deles.
— Neste caso, o lugar deve ser incrivelmente antigo! exclamou Mudrin.
— Tenho a impressão de que foi usado durante pelo menos cinco mil anos. Talvez muito mais. Talvez dez ou quinze mil anos. Não temos maneira de saber até chegarmos ao primeiro nível, e isso terá que esperar até a próxima expedição.
— Cinco mil anos, você disse? Será possível?
— Para construir, reconstruir e reconstruir de novo? Cinco mil anos, no mínimo.
— Mas nenhum outro sítio arqueológico, já escavado em qualquer lugar do mundo, é tão antigo! — protestou Mudrin, com assombro. — A própria cidade de Beklimot tem apenas dois mil anos, não é? E é considerada a cidade mais antiga de que se tem notícia em Kalgash.
— A cidade mais antiga de que se tem notícia — repetiu Siferra. — Mas o que impede que existam outras mais antigas? Muito mais antigas? Mudrin, esta fotografia fala por si mesma. Aqui está um sítio que tem que ser mais antigo que Beklimot. Existem artefatos parecidos com os encontrados em Beklimot no nível mais alto de Thombo, situado muito longe dali! Beklimot deve ser uma cidade relativamente recente, do ponto de vista da história da civilização. A cidade de Thombo, que já era muito antiga antes de Beklimot ser fundada, deve ter pegado fogo e ter sido reconstruída várias vezes, em um intervalo de tempo correspondente a centenas de gerações.