— E foram apenas alguns minutos em um quarto escuro.
— A sensação é suportável — afirmou Beenay.
— Pode ser, no caso de um quarto escuro. Pelo menos, por um tempo limitado. Mas você sabe o que aconteceu na Exposição do Centenário de Jonglor, não sabe? Lembra-se do escândalo do Túnel do Mistério? Beenay, eu lhe contei a história uma noite, no verão passado, no Clube Seis Sóis, quando você estava com aquele jornalista, como é o nome dele? Theremon?
— Ah, sim! Eu me lembro! As pessoas que experimentaram a Escuridão em um brinquedo do parque e perderam o juízo.
— Era um túnel de um quilômetro e meio de comprimento, sem nenhuma iluminação. Você entrava em um pequeno vagão aberto e passava quinze minutos na Escuridão. Algumas pessoas simplesmente morreram de pavor. Outras saíram de lá com a saúde mental comprometida para o resto da vida.
— Por quê? Que foi que as afetou?
— A mesma coisa que fez você se sentir mal quando fechou a cortina e teve a impressão de que as paredes estavam tentando esmagá-lo. Existe um nome na psicologia para o medo instintivo da ausência de luz. Nós o chamamos de “claustrofobia”, porque a falta de luz está sempre associada a lugares fechados, de modo que o medo de um é o medo do outro. Entende?
— Está bem, mas por que só algumas pessoas piraram?
— As pessoas que… que “piraram”, para usar a sua expressão, foram aqueles infelizes que não tinham uma estrutura psicológica sólida o suficiente para resistir à claustrofobia que as acometeu ao serem submetidas à Escuridão. É uma sensação muito desagradável, acredite. Eu sei, porque estive no Túnel. Você passou dois ou três minutos no escuro e pude ver como ficou nervoso. Imagine quinze minutos!
— Mas eles não se recuperaram depois de saírem do Túnel?
— Alguns, sim. Outros, porém, vão sofrer os efeitos durante anos, ou talvez para toda a vida. Ficaram claustrofóbicos. O medo da Escuridão e de lugares fechados se cristalizou e se tornou, ao que tudo indica, permanente. E ainda houve alguns, como eu já disse, que morreram de choque. Esses, nós temos certeza de que não vão se recuperar, hein? Aí está o que quinze minutos no escuro podem fazer!
— Nem todos são afetados — insistiu Beenay. — Ainda não acredito que os efeitos sejam tão drásticos para a maioria de nós. Certamente não para mim.
Sheerin deu um suspiro de impaciência.
— Imagine a Escuridão… em toda parte. Nenhuma luz. As casas, as árvores, os campos, a terra, o céu… pretos! A não ser pelas Estrelas, se formos nos fiar nas palavras dos Apóstolos. A não ser pelas Estrelas, sejam elas o que forem. Você pode imaginar nosso planeta totalmente às escuras?
— Posso, sim — declarou Beenay, de forma ainda mais truculenta.
— Não! Não, você não pode! — Sheerin deu um soco na mesa, irritado. — Está enganando a si próprio! Você não pode imaginar. Seu cérebro não está em condições de apreender essa ideia, mais do que… escute, Beenay, você estudou matemática, não estudou? O seu cérebro consegue apreender realmente a ideia de infinito? Ou a ideia de eternidade? Você pode somente falar a respeito desses conceitos. Reduzi-los a equações e fazer de conta que os números abstratos são a realidade, quando de fato não passam de marcas no papel. Mas quando se esforça a sério para compreender a noção de infinito, fica tonto bem depressa, estou certo disso. Uma fração da realidade é suficiente para perturbá-lo. O mesmo se pode dizer da pequena amostra de Escuridão que acaba de provar. Quando a Escuridão tomar conta de tudo, você será colocado diante de um fenômeno que está além da sua compreensão. Você vai ficar louco, Beenay. De forma total e irreversível. É isso que, vai acontecer!
Mais uma vez, um silêncio opressivo tomou conta da sala. Afinal, Athor perguntou:
— Então é esta a sua conclusão final, Dr. Sheerin ? Insanidade em massa?
— Pelo menos setenta e cinco por cento da população vão se tornar irracionais. Talvez oitenta e cinco por cento. Talvez mesmo cem por cento.
Athor sacudiu a cabeça.
— É monstruoso. Assustador. Uma calamidade inacreditável. Devo confessar que penso parecido com Beenay: vamos dar um jeito de enfrentar o problema. Os efeitos serão menos cataclísmicos do que suas previsões levam a crer. Velho como sou, não posso deixar de sentir um certo otimismo, uma certa esperança…
— Posso falar, Dr. Athor? — perguntou Siferra.
— Claro. Claro! É para isso que você está aqui.
A arqueóloga se levantou e foi até o centro da sala.
— De certa forma, minha presença aqui é inesperada. Quando discuti pela primeira vez com Beenay minhas descobertas na península de Sagikan, pedi-lhe para guardar segredo. Temia que minha reputação profissional ficasse comprometida, porque sabia que os indícios que encontrara podiam ser facilmente apontados como comprovação das teses defendidas pelo movimento religioso mais irracional, mais perigoso, mais ameaçador que existe no seio de nossa sociedade. Estou me referindo, é claro, aos Apóstolos do Fogo.
— Mais tarde, porém, quando Beenay me procurou com as suas descobertas, com a notícia de que Dovim estava sujeito a eclipses periódicos, compreendi que não podia manter mais em segredo o que sei. Tenho comigo mapas e fotografias das escavações que fizemos na colina de Thombo, perto do sítio arqueológico de Beklimot, na península de Sagikan. Beenay, você já viu esse material, mas se tiver a bondade de passá-lo ao Dr. Athor e ao Dr. Sheerin…
Siferra esperou até que tivessem visto os mapas e fotografias. Depois, prosseguiu.
— Será mais fácil compreender os mapas se os senhores pensarem na colina de Thombo como um gigantesco bolo em camadas de sítio antigos. Cada cidade foi construída sobre os restos da cidade anterior. A mais recente está no topo, é claro. É uma cidade típica do que chamamos a cultura de Beklimot. Abaixo dela está uma cidade construída pelo mesmo povo, ao que tudo indica, em um estágio mais primitivo de sua civilização. Isso se repete camada após camada, em um total de sete diferentes períodos de colonização, ou talvez até mais. Todos esses períodos, senhores, foram interrompidos bruscamente porque a cidade foi destruída pelo fogo. Podem ver nas fotografias as linhas escuras que separam as camadas. Essas linhas são feitas de restos carbonizados. Minha estimativa inicial, com base no tempo necessário para essas cidades atingirem o tamanho que possuíam na ocasião em que foram queimadas é de aproximadamente dois mil anos. O último deve ter acontecido há cerca de dois mil anos, pouco antes da expansão da cultura de Beklimot, que marca o início do período histórico.
— Entretanto, o carvão se presta muito bem à datação por radiocarbono, que permite determinar a idade de um sitio arqueológico com boa precisão. Desde que o material recolhido em Thombo chegou à Cidade de Saro, o laboratório de nosso departamento vem se dedicando à análise do radiocarbono, e agora os resultados ficaram prontos. Posso citá-los de cor. A mais recente das cidades de Thombo foi destruída pelo fogo há 205O anos, com um erro estatístico de má ou menos vinte anos. O carvão da cidade seguinte tem 410O anos de idade, com um erro de mais ou menos quarenta anos, A terceira foi destruída há 620O anos, com um erro de mais ou menos oitenta anos. A quarta tem 830O anos, com um erro de mais ou menos cem anos. A quinta…
— Minha nossa! — exclamou Sheerin. — Os intervalos são praticamente iguais!
— Exatamente. Os incêndios ocorreram a intervalos de pouco mais de vinte séculos. Se levarmos em conta a pequena imprecisão que é inevitável nesse tipo de medida, todos os dados são compatíveis com a hipótese de que os incêndios ocorreram com um intervalo de exatamente 2049 anos. O que, segundo Beenay, corresponde precisamente ao intervalo entre os eclipses de Dovim. Além disso — acrescentou Siferra, em tom preocupado -, corresponde ao comprimento do que os Apóstolos do Fogo chamam de Ano de Divindade, no fim do qual a humanidade será destruída pelo fogo.