— Beenay é um sujeito muito esperto. Aposto que descobrirá um meio de se tornar útil para Mondior.
— E se não descobrir?
— Siferra, será que temos mesmo que gastar energia nos preocupando com as coisas horríveis que podem acontecer ao nosso amigo, quando não há nada que a gente possa fazer por ele?
— Desculpe. Não pensei que você estivesse tão nervoso.
— Siferra…
— Esqueça. Talvez eu é que esteja nervosa.
— Tudo vai dar certo — disse Theremon. — Beenay e Raissta vão conseguir sobreviver. Chegaremos a Aragando a tempo de dar o alerta geral. Os Apóstolos do Fogo não vão conquistar o mundo.
— E os mortos vão sair dos túmulos e andar de novo. Oh, Theremon, Theremon…
— Eu sei.
— Que vamos fazer?
— Vamos andar o mais depressa que pudermos, é isto que vamos fazer. E sem olhar para trás. Olhar para trás não adianta nada.
— É verdade — concordou Siferra. Sorriu e segurou a mão do jornalista. Os dois caminharam apressados e em silêncio.
Era espantoso, pensou Theremon, como estavam progredindo com rapidez, agora que haviam acertado o ritmo. Nos primeiros dias, quando estavam saindo da cidade e procurando uma passagem na rodovia congestionada, seus corpos haviam protestado violentamente contra o esforço extra que lhes era imposto. Agora, porém, moviam-se como duas máquinas perfeitamente adaptadas à tarefa. As pernas de Siferra eram quase tão compridas quanto as suas, e caminhavam lado a lado, os músculos trabalhando com eficiência, os corações batendo compassadamente, os pulmões se expandindo e se contraindo em um ritmo impecável. Um, dois. Um, dois. Um, dois…
Ainda faltavam algumas centenas de quilômetros, é verdade. Mas nesse ritmo, logo chegariam lá. Mais um mês, talvez. Talvez menos.
Agora que se afastavam das regiões urbanas, a estrada estava quase totalmente desimpedida. Ali o tráfego não havia sido tão intenso, em primeiro lugar, e parecia que muitos motoristas tinham conseguido sair da rodovia, mesmo com as Estrelas brilhando no céu, porque não havia tanto perigo de serem abalroados por outros carros que tinham perdido o controle.
Havia menos barricadas, também. As novas províncias naquela região de população escassa eram bem maiores do que mais ao norte, e os habitantes pareciam bem menos preocupados com coisas como a Busca. Theremon e Siferra foram interrogados seriamente apenas duas vezes nos cinco dias seguintes. Nas outras barreiras, apenas mandaram que passassem, não precisaram nem mostrar o passaporte.
Até o tempo parecia estar colaborando. Os dias eram claros, e a temperatura, amena; uma pancada de chuva uma vez ou outra não era suficiente para causar grandes transtornos. Caminhavam durante quatro horas, paravam para uma refeição ligeira, caminhavam mais quatro horas, comiam de novo, andavam, paravam durante seis horas para dormir (o que faziam por turnos; um dos dois sempre ficava de vigia), depois acordavam e seguiam viagem. Como máquinas. Os sóis nasciam e se punham em seu ritmo milenar, agora Patru, Trey e Dovim, agora Onos, Sitha e Tano, agora Onos e Dovim, agora Trey e Patru, agora quatro sóis ao mesmo tempo… a sucessão interminável, o grande desfile dos céus. Theremon não fazia ideia de quantos dias se passaram desde que deixaram o Abrigo. A própria noção de datas, calendários, dias, semanas, meses, lhe parecia estranha, arcaica, ultrapassada, alguma coisa de um mundo que ficara para trás.
Depois daquela crise de depressão, Siferra voltara a ser a mulher otimista de sempre.
Aquilo seria um passeio. Chegariam a Aragando sem problemas.
Estavam passando por um distrito que agora se chamava Vale da Primavera… ou talvez fosse Jardim Florido, os locais que encontravam à beira da estrada pareciam usar diferentes nomes para a comunidade. Era uma zona rural, com poucos sinais da devastação que atingira as regiões mais urbanizadas: um ou outro celeiro destruído pelo fogo, ou um bando de animais que pareciam sem dono, e era tudo. O ar era fresco e perfumado, a luz dos sóis reconfortante. Se não fosse a estranha ausência de tráfego na rodovia, teriam a impressão de que nada de extraordinário havia acontecido.
— Já passamos do meio do caminho? — perguntou Siferra.
— Ainda não. Há muito tempo que não aparece uma placa, mas acho que…
Interrompeu o que estava dizendo.
— Que foi, Theremon?
— Olhe. Olhe ali, à direita. Naquela estrada secundária que vem do oeste.
Olharam por cima da cerca da estrada. Lá em baixo, a algumas centenas de metros de distância, uma longa fila de caminhões estava estacionada no acostamento da estrada secundária, perto do acesso à rodovia. Ali havia um acampamento movimentado: tendas, uma grande fogueira, alguns homens rachando lenha.
Duzentas ou trezentas pessoas, talvez. Todas usando vestes negras.
Theremon e Siferra trocaram olhares assustados.
— Os Apóstolos! — exclamou a arqueóloga.
— Isso mesmo. Abaixe-se. Vamos nos esconder atrás da cerca.
— Como foi que eles conseguiram chegar aqui tão depressa? A parte inicial da rodovia está totalmente bloqueada! Theremon sacudiu a cabeça.
— Eles não vieram pela rodovia. Observe… eles têm caminhões que funcionam. Agora mesmo está chegando mais um. Deuses, parece estranho, não é, ver um caminhão em movimento? Ouvir o barulho de um motor, depois de tanto tempo! Eles conseguiram de alguma forma pôr as mãos em uma frota de caminhões e em um suprimento de combustível. E é óbvio que vieram de Saro por estradas secundárias. Agora estão se preparando para entrar na rodovia, que provavelmente está aberta daqui até Aragando. Poderão chegar lá esta noite mesmo.
— Esta noite! Theremon, que vamos fazer?
— Não sei. Só me ocorre uma coisa, mas não sei se vai dar certo. Que tal nós roubarmos um daqueles caminhões e partirmos a toda velocidade na direção de Aragando? Mesmo que a gente chegue lá apenas duas horas na frente dos Apóstolos, a maioria do pessoal de Aragando terá tempo de fugir. Certo?
— Sei lá. Parece loucura. Como vamos roubar um caminhão? No momento em que nos virem, vão saber que não somos Apóstolos.
— Eu sei. Eu sei. Deixe-me pensar. — Depois de um momento, o repórter disse: — Talvez a gente possa pegar dois deles longe dos outros e ficar com as roupas deles. Usaremos nossas pistolas, se for necessário. Depois, usando vestes negras, entramos calmamente em um caminhão, ligamos o motor e tomamos a direção da rodovia…
— Eles nos seguiriam depois de dois minutos.
— Talvez. Ou talvez, se agirmos com calma, eles pensem que estamos obedecendo às ordens de alguém… e quando perceberem que não estamos, já estaremos a cem quilômetros de distância. — Olhou para a arqueóloga, ansioso. — Que é que você acha, Siferra? Que outra opção nos resta? Continuar a pé, sabendo que vamos levar semanas para chegar a Aragando e que eles poderão nos ultrapassar em questão de horas?
Siferra olhava para Theremon com se ele tivesse perdido o juízo.
— Dominar dois Apóstolos… roubar um dos caminhões… chegar a Aragando na frente deles… oh, Theremon, não vai dar certo. Você sabe disso.
— Muito bem — disse o repórter, bruscamente. — Você fica aqui. Vou fazer tudo sozinho. É nossa única esperança, Siferra.
Levantou-se e começou a caminhar pelo acostamento em direção à rampa de saída, a algumas centenas de metros de distância.
— Não… espere, Theremon…
O jornalista olhou para trás e riu.
— Vem comigo?
— Vou. Oh, isto é uma loucura!
— Eu sei. Que mais podemos fazer?
Siferra estava certa. Era mesmo um plano louco. Entretanto, não havia alternativa. Agora era evidente que a mensagem que Beenay recebera não correspondia exatamente à realidade. Os Apóstolos nunca tinham pensado em descer a Grande Estrada do Sul, província por província. Em vez disso, pretendiam dirigir-se a Aragando com um grande comboio armado, usando estradas secundárias para contornar os bloqueios existentes na parte norte da rodovia principal.