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Ricky Underwood esperou para ver onde Kemal ia almoçar e juntou-se então a ele.

- Escute, aqui, seu órfão. Quando é que sua madrasta má vai mandar você de volta ao lugar de onde veio? Kemal ignorou-o.

- Estou falando com você, sua aberração. Não acha mesmo que ela vai ficar com você, acha? Todo mundo sabe por que ela trouxe você pra cá, seu cara de camelo. Porque era uma famosa correspondente de guerra, e salvar um aleijado ia fazê-la parecer uma pessoa boazinha.

- Fukat! -gritou Kemal. Levantou-se e saltou para cima de Underwood.

O primeiro golpe de Underwood atingiu a barriga de Kemal e depois, com força, o rosto. Kemal caiu, contorcendo-se de dor Underwood disse:

- Toda vez que quiser mais é só me avisar E é melhor fazer isso rápido porque, pelo que eu soube, você já é história.

Kemal vivia em agonia de dúvidas. Não acreditou nas coisas que Ricky Underwood lhe dissera, no entanto… E se fossem verdade? E se Dana me mandar mesmo de volta? Underwood tem razão, pensou Kemal. Eu sou uma aberração. Por que uma pessoa tão maravilhosa como Dana ia me querer? Kemal achou que sua vida chegara ao fim quando os pais e as irmãs foram mortos em Sarajevo. Fora mandado para a Instituição dos Órfãos nos arredores de Paris, o que passou a ser um pesadelo.

Às duas da tarde de todas as sextas-feiras, os meninos e meninas faziam fila no orfanato, quando chegavam possíveis pais adotivos para avaliá-los e escolher um que levariam para casa.

Com a aproximação de toda sexta-feira, a excitação e a tensão entre as crianças intensificavam-se a um nível quase insuportável. Tomavam banho, vestiam-se com aprumo e, enquanto os adultos percorriam a fila, cada criança rezava intimamente para ser escolhida.

Invariavelmente, quando os pais em potencial viam Kemal, sussurravam:

- Veja, ele só tem um braço - e seguiam adiante.

Todas as sextas-feiras era a mesma coisa, mas Kemal continuava esperando, esperançoso, enquanto os adultos examinavam a fila de candidatos. Mas sempre escolhiam outras crianças.

Parado ali, ignorado, Kemal sentia-se tomado de humilhação.

Sempre será outro, pensava, afligindo-se. Ninguém me quer.

Desejava desesperadamente fazer parte de uma família.

Tentava tudo em que conseguia pensar para fazer com que isso acontecesse. Numa sexta-feira, sorria com muita alegria para os adultos, a fim de fazê-los sentir que era um menino simpático e amistoso. Na seguinte, fingia-se ocupado com alguma coisa, mostrando-lhes que não ligava a mínima se fosse ou não escolhido, eles é que seriam os felizardos se o tivessem. De outras vezes, olhava intensamente para eles, suplicandolhes em silêncio que o levassem para casa. Mas, semana após semana, era sempre outra criança a escolhida e levada para lares maravilhosos e famílias felizes.

Como por milagre, Dana mudou tudo isso. Ela o encontrou vivendo sem teto nas ruas de Sarajevo. Depois que foi embarcado de avião pela Cruz Vermelha para um orfanato nos arredores de Paris, ele lhe escreveu uma carta. Para seu espanto, Dana telefonou para o orfanato e disse que queria que Kemal fosse morar com ela nos Estados Unidos. Foi o momento mais feliz da vida do garoto. Um sonho impossível que se tornou realidade e que acabou sendo uma alegria ainda muito maior do que até então imaginara.

Sua vida mudou por completo. Ele agora agradecia que ninguém o tivesse escolhido antes. Não se sentia mais sozinho no mundo. Alguém se interessava por ele. Kemal amava Dana de todo o coração e alma, mas no íntimo atligia-o o terrível medo que Ricky Underwood lhe infundira, de que algum dia ela mudasse de idéia e o mandasse de volta para o orfanato, para a vida no inferno de que escapara. Ele tinha um sonho recorrente: viase mais uma vez no asilo de órfãos, e era sexta-feira. Uma fila de adultos inspecionava as crianças, entre eles Dana. Ela olhava para Kemal e dizia:

Esse garoto medonho só tem um braço, passava adiante e escolhia o menino a seu lado; Kemal acordava aos prantos.

Ele sabia que Dana detestava que se metesse em brigas na escola e fazia tudo para evitá-las, mas não podia suportar que Ricky Underwood e seus amigos a insultassem. Assim que perceberam isso, passaram a intensificar os insultos a Dana e, em conseqüência, também as brigas.

Underwood cumprimentava Kemal assim:

- E aí, já arrumou a mala, camarão? No noticiário desta manhã, disseram que a megera da sua madrasta vai mandar você de volta para a Iugoslávia.

- Zbosti! - berrava Kemal.

E a luta começava. Ele voltava para casa de olho roxo e com hematomas, mas, quando Dana Lhe perguntava o que acontecera, não lhe dizia a verdade, pois o apavorava o que poderia acontecer se exprimisse em palavras o que Ricky Underwood dissera.

Agora, à espera de Dana no gabinete do diretor, Kemal pensava: Quando ela souber o que fiz desta vez, vai me mandar embora. Ficou ali sentado, o coração disparado.

Quando Dana entrou no gabinete de Thomas Fienry, viu o diretor andando de um lado para o outro na sala, com a fisionomia sinistra. Kemal estava sentado numa cadeira do outro lado do escritório.

- Bom dia, Srta. Evans. Por favor, sente-se - disse ele.

Pegou então uma grande faca de açougueiro na escrivaninha.

- Um dos professores tirou isto dele.

Dana girou e olhou para Kemal, furiosa.

- Por quê? - perguntou, zangada. - Por que trouxe isso para a escola?

Kemal olhou para ela e disse, carrancudo:

- Porque eu não tinha um revólver - Kemal!

Dana virou-se para o diretor - Posso conversar com o senhor a sós, Sr Henry?

- Sim. - Ele olhou para Kemal, o queixo endurecido. Espere no corredor.

Kemal levantou-se, deu uma última olhada na faca e saiu.

Dana começou:

- Sr. Henry, Kemal tem doze anos. Viveu a maior parte desses anos adormecendo com o som de bombas explodindo nos ouvidos, as mesmas bombas que mataram a mãe, o pai e a irmã dele. Uma delas lhe arrancou o braço. Quando o encontrei em Sarajevo, ele morava numa caixa de papelão num terreno baldio. Com centenas de outros meninos e meninas sem lar, vivendo ali como animais. - Lembrava-se Dana, tentando manter a voz firme. - As bombas pararam, mas os meninos e meninas continuaram sem lar e sem esperança. A única maneira que têm para se defender dos inimigos é uma faca, uma pedra ou uma arma, se tiverem muita sorte de pôr as mãos numa.

- Cerrou os olhos por um instante e respirou fundo. - Essas crianças vivem apavoradas. Kemal vive apavorado, mas é um garoto decente. Só precisa aprender que está seguro aqui. Que nenhum de nós é seu inimigo. Prometolhe que isso não se repetirá.

Houve um longo silêncio. Thomas Henry então disse:

- Se algum dia eu precisar de advogado, Srta. Evans, gostaria que me defendesse.

Ela conseguiu dar um sorriso de alívio.

- Prometo.

Thomas Henry exavou um suspiro.

- Está bem. Converse com Kemal. Se ele fizer mais uma vez alguma coisa semelhante, receio que terei de…

- Vou falar com ele. Obrigada, Sr Henry Kemal esperava no corredor - Vamos para casa - disse Dana, ríspida.

- Eles vão ficar com a minha faca?

Ela não se deu o trabalho de responder.

No trajeto para casa, Kemal disse:

- Me desculpe por ter-Lhe causado esse problema, Dana.

- Oh, por nada, bobagem. Só porque eles decidiram não o expulsar da escola? Escute, Kemal…