- Tudo bem. Nada mais de facas.
Quando chegaram ao apartamento, ela disse:
- Tenho de voltar ao estúdio, Kemal, mas esta noite vamos ter uma longa conversa.
Ao terminar a transmissão do noticiário da noite, Jeff virou-se para Dana:
- Você parece preocupada, meu bem.
- E estou. É o Kemal. Não sei o que fazer com ele, Jeff.
Tive de ir à escola conversar com o diretor esta manhã, e mais duas governantas se despediram por causa dele.
- Ele é um garoto maravilhoso - disse Jeff. - Só precisa de um período de aquecimento.
- Talvez. Jeff?
- Sim?
- Espero não ter cometido um terrível erro trazendo Kemal pra cá.
Quando Dana retornou ao apartamento, encontrou Kemal à espera.
- Sente-se - ordenou. - Precisamos conversar. Você precisa começar a obedecer às ordens, e essas brigas na escola têm de acabar. Sei que os outros garotos estão tornando as coisas difíceis para você, Kemal, mas precisa chegar a um entendimento com eles. Se continuar se metendo em brigas, o Sr Henry vai expulsá-lo da escola.
- Não me importa.
- Tem de se importar. Quero que você tenha um futuro maravilhoso, e isso não pode acontecer sem uma boa formação escolar. O Sr Henry está lhe dando uma nova oportunidade, mas…
- Ele que se foda.
- Kemal! - Sem pensar, Dana deu-lhe um tapa no rosto.
Arrependeu-se no mesmo instante.
Ele olhou fixo para ela, uma expressão de descrença no rosto, correu para o escritório e bateu a porta.
O telefone tocou. Dana atendeu. Era Jeff.
- Dana…
- Querido, eu… eu não posso falar no momento. Estou muito perturbada.
- Que foi que houve?
- Kemal. Ele é impossível!
- Dana…
- Sim?
- Ponha-se no lugar dele.
- Como?
- Pense nisso. Lamento, estou entrando no ar. Falamos depois. - Desligou.
Ponha-se no lugar dele? Isso não faz o menor sentido, pensou Dana. Como posso saber o que Kemal sente? Não sou órfã de guerra de doze anos com um só braço, nem sofri o que ele sofreu. Dana ficou ali sentada, durante um longo tempo, pensando. Ponha-se no lugar dele. Levantou-se, foi para o quarto de dormir, fechou a porta e abriu a do armário. Antes da chegada de Kemal, Jeff passava várias noites por semana no apartamento dela e tinha deixado algumas roupas ali. No armário havia calças, camisas, gravatas, um suéter e um paletó.
Ela pegou algumas roupas e pôs na cama. Foi até a gaveta da cômoda e escolheu um calção e um par de meias de Jeff.
Depois despiu-se completamente. Pegou o calção de Jeff com a mão esquerda e começou a vesti-lo. Desequilibrou-se e caiu.
Foram necessárias mais duas tentativas até conseguir vesti-lo.
Em seguida, pegou uma das camisas. Só com a mão esquerda, levou três frustrantes minutos para pô-la e abotoá-la. Precisou sentar-se na cama para enfiar a calça, e foi difícil puxar o zíper Levou mais dois minutos para vestir o suéter de Jeff.
Quando acabou afinal de vestir-se, sentou-se para recuperar o fôlego. Era aquilo que Kemal tinha de agüentar todas as manhãs. E era só o começo.
Ainda precisava tomar banho, escovar os dentes e pentear os cabelos. E isso agora. E antes? Vivendo no horror da guerra, vendo a mãe, o pai, a irmã e os amigos assassinados.
Jeff tem razão, ela pensou. Estou esperando muito dele e cedo demais.
Kemal precisa de tempo para se ajustar. Jamais o abandonarei. Minha mãe abandonou meu pai e nunca a perdoarei por isso.
Devia existir um oitavo pecado mortaclass="underline" Não abandonareis aqueles que vos amam.
Devagar, enquanto tirava as roupas de Jeff e punha as suas, Dana pensou nos títulos das músicas que Kemal ouvia repetidas vezes no aparelho de CD. “Não quero perdê-la”, “Preciso de você esta noite”, “Contanto que me ame”, “Eu só quero ficar com você”, “Preciso de amor”.
Todas as letras falavam de solidão e carência.
Dana pegou o boletim de Kemal. Era verdade que ele ia mal na maioria das matérias, mas tinha um “A” em matemática. O “A” que é importante, pensou Dana. É onde ele se supera. Aí é que tem um futuro. Vamos trabalhar nos outros conceitos.
Quando ela abriu a porta do escritório, Kemal estava deitado na cama, os olhos muito cerrados, o rosto pálido coberto de lágrimas. Ela olhou-o por um momento, depois curvou-se e beijou-lhe a face.
- Lamento tanto, Kemal - sussurrou ela. - Me perdoe.
Amanhã será um dia melhor.
Cedo na manhã seguinte, Dana levou Kemal a um famoso cirurgiãoortopedista, o Dr William Wilcox. Após examiná-lo, o Dr Wilcox conversou com Dana a sós.
- Srta. Evans, muni-lo de uma prótese custaria vinte mil dólares e…
Mal houve uma pausa.
- Estou disposta a pagar - Bem, há um problema em relação a isso - continuou o Dr Wilcox. - Kemal só tem doze anos. Seu corpo não vai parar de crescer até os dezessete ou dezoito. O braço poderia crescer mais que a prótese no espaço de poucos meses. Receio que não seja prático.
Dana teve a sensação de que afundava.
- Entendo. Obrigada, doutor
Já na rua, tranqüilizou Kemal.
- Não se preocupe, querido. A gente vai encontrar um meio de resolver isso.
Deixou Kemal na escola e foi para o estúdio. A uns cinco quarteirões, o celular tocou. Ela pegou-o.
- Alô?
- É Matt. Vai haver uma coletiva sobre o assassinato de Winthrop ao meiodia na sede da polícia. Quero que a cubra.
Estou mandando uma equipe de câmera. A polícia está com o rabo preso na ratoeira. A matéria está crescendo a cada minuto e os policiais não têm a mínima pista.
- Estarei lá, Matt.
O chefe de polícia, Dan Burnett, falava ao telefone em seu escritório quando a secretária lhe avisou:
- O prefeito está na linha dois.
Burnett respondeu, irritado:
- Diga a ele que estou falando com o governador na linha um. - E voltou para o telefone. - Sim, governador. Sei disso…
Sim, senhor Acho que… Tenho certeza de que podemos… Logo que tivermos… Certo. Até logo, senhor - Bateu o telefone.
- A secretária da assessoria de imprensa da Casa Branca na linha quatro - avisou-lhe a secretária.
Toda a manhã transcorreu assim.
Ao meio-dia, na sala de conferência do Centro Municipal, na Indiana Avenue, 300, centro de Washington, apinhava-se o pessoal da mídia. O chefe de polícia Burnett entrou e dirigiu-se para a frente da sala.
- Vamos fazer silêncio, por favor - Esperou até que todos se calassem.
- Antes de ouvir suas perguntas, tenho uma declaração a fazer O brutal assassinato de Gary Winthrop é uma grande perda, não apenas para esta comunidade, mas para o mundo, e nossa investigação continuará até prendermos os responsáveis por esse crime hediondo. Podem fazer suas perguntas.
Um repórter levantou-se.
- Chefe Bumett, a polícia tem alguma pista?
- Por volta das três da manhã, uma testemunha viu dois homens carregando uma caminhonete branca na entrada da garagem da casa de Gary Winthrop.
Os movimentos deles lhe pareceram suspeitos, e a testemunha anotou o número da placa. Era de um caminhão roubado.
- A polícia sabe o que foi tirado da casa?
- Desapareceu uma dezena de quadros valiosos.
- Além dos quadros, mais alguma coisa foi roubada?
- Não.
- E dinheiro, jóias?
- As jóias e o dinheiro ficaram intocados. Os ladrões só estavam atrás das pinturas.
- Chefe Burnett, a casa não tinha um sistema de alarme? E se tinha, estava ligado?
- Tinha. Segundo o mordomo, ficava sempre ligado à noite. Os assaltantes descobriram um meio de desativá-lo. Ainda não sabemos ao certo como.
- Como os assaltantes entraram na casa? O chefe Burnett hesitou.
- É uma pergunta interessante. Não há sinais de arrombamento. Ainda não temos a resposta.
- Poderia ter sido um trabalho de gente da casa?