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— Esfaquear pessoas — grunhiu Nynaeve. Ela baixou a cabeça de Dailin e pôs a mão na testa da mulher. A Aiel fechou os olhos outra vez. — Esfaquear mulheres! — Aviendha remexeu os pés e franziu a testa, e não era a única das Aiel a fazer isso.

— Fogo devastador — repetiu Egwene. — Aviendha, o que é fogo devastador?

A Aiel direcionou a testa franzida para ela.

— Não sabe, Aes Sedai? Nas histórias antigas, as Aes Sedai o manipulavam. As histórias o descrevem como algo apavorante, mas não sei nada além disso. Dizem que nos esquecemos de muitas coisas que um dia soubemos.

— Talvez a Torre Branca tenha se esquecido de muitas coisas também — respondeu Egwene. Eu sabia disso naquele… sonho, ou seja lá o que tenha sido. Foi tão real quanto Tel’aran’rhiod. Eu poderia apostar com Mat.

— Não têm o direito! — bradou Nynaeve, de repente. — Ninguém tem o direito de dilacerar um corpo! Não é certo!

— Ela está irritada? — perguntou Aviendha, preocupada.

Chiad, Bain e Jolien trocaram olhares aflitos.

— Está tudo bem — respondeu Elayne.

— Está melhor que bem — acrescentou Egwene. — Ela está ficando irritada, e isso é muito melhor que “tudo bem”.

O brilho tênue de saidar envolveu Nynaeve de repente, e Egwene se inclinou para a frente, tentando enxergar, assim como Elayne. Dailin deu um salto na mesma hora, gritando, os olhos arregalados. Um instante depois, Nynaeve apoiou as costas da mulher de volta no chão, e o brilho se extinguiu. Os olhos de Dailin se fecharam, e ela ficou ali deitada, ofegante.

Eu vi, pensou Egwene. Eu… acho que vi. Ela não sabia se conseguira distinguir os muitos fluxos, muito menos a forma como Nynaeve os combinara. O que a outra mulher fizera naqueles poucos segundos fora parecido com tecer quatro carpetes de uma vez só, e com os olhos vendados.

Nynaeve usou as ataduras ensanguentadas para limpar a barriga de Dailin, retirando o sangue fresco, vermelho vivo, e as crostas negras de sangue ressecado. Não havia feridas ou cicatrizes, apenas pele saudável e consideravelmente mais pálida que o rosto de Dailin.

De cara fechada, Nynaeve pegou os panos cheios de sangue, levantou-se e jogou-os no rio.

— Lavem o tronco dela para limpar o resto — mandou. — E ponham umas roupas nela. Está com frio. E preparem comida. Ela vai acordar com fome. Ajoelhou-se na beira do rio e lavou as mãos.

39

Fios do Padrão

Jolien pôs a mão trêmula sobre o dorso de Dailin, onde antes estava a ferida. Soltou um arquejo surpreso ao tocar a pele macia, como se não acreditasse nos próprios olhos.

Nynaeve endireitou-se e secou as mãos no manto. Egwene teve que admitir que aquela lã boa dava uma toalha melhor que seda ou veludo.

— Eu mandei lavá-la e vesti-la — reclamou Nynaeve, ríspida.

— Sim, Sábia — respondeu Jolien, mais do que depressa, e ela, Chiad e Bain correram para obedecer.

Um riso curto escapou dos lábios de Aviendha, uma risada quase no limiar das lágrimas.

— Ouvi dizer que uma Sábia do ramo das Torres Dentadas é capaz de fazer isso, e também uma do ramo das Quatro Tocas, mas sempre achei que fossem apenas boatos. — Ela respirou fundo, recompondo-se. — Aes Sedai, tenho uma dívida com vocês. Minha água é sua, e você é bem-vinda sob a sombra do meu ramo. Dailin é minha irmã-segunda. — Ela percebeu o olhar confuso de Nynaeve e acrescentou: — Ela é filha da irmã de minha mãe. Temos quase o mesmo sangue, Aes Sedai. Tenho uma dívida de sangue com vocês.

— Se eu tiver que derramar algum sangue — retrucou Nynaeve, seca —, eu mesma farei isso. Se quiserem retribuir, digam se há algum navio em Jurene. A próxima vila ao sul?

— A aldeia onde os soldados hasteiam o estandarte do Leão Branco? — perguntou Aviendha. — Tinha um navio lá ontem, quando eu estava de vigia. As histórias antigas falam em navios, mas foi estranho ver um deles com meus próprios olhos.

— Queira a Luz que ele ainda esteja lá. — Nynaeve começou a guardar os papéis dobrados que continham os pós de ervas. — Fiz o que pude pela moça, Aviendha, e agora temos que partir. Ela precisa comer e descansar. E tente impedir qualquer um de enfiar uma espada nela.

— O que tem que acontecer acontece, Aes Sedai — respondeu a Aiel.

— Aviendha — começou Egwene —, como é que vocês fazem para cruzar os rios, já que sentem… o que sentem por eles? Tenho certeza de que há pelo menos um rio quase tão grande quanto o Erinin entre essas terras aqui e o Deserto.

— O Alguenya — confirmou Elayne. — A não ser que o tenham contornado.

— Vocês têm muitos rios. Alguns deles possuem essas coisas chamadas pontes, por onde tivemos que cruzá-los, e outros conseguimos passar a vau. Para atravessar os outros, Jolien conseguiu lembrar que a madeira flutua. — Ela bateu no tronco de um grande abeto. — Esses aqui são grandes, mas flutuam tão bem quanto um raminho. Encontramos madeira morta e construímos um… navio. Um navio pequeno, com dois ou três troncos amarrados, para cruzar o rio grande. — Ela contou como se não fosse nada de mais.

Egwene a encarou, impressionada. Se temesse alguma coisa da mesma forma que os Aiel obviamente temiam os rios, será que a enfrentaria da mesma forma que eles? Achava que não. E a Ajah Negra?, perguntou uma vozinha. Não tem mais medo delas? É diferente, respondeu. Não há bravura nenhuma nisso. Ou eu as caço ou fico parada como um coelhinho à espera do gavião. Ela repetiu para si mesma o velho ditado: É melhor ser o martelo do que o prego.

— Precisamos ir — comentou Nynaeve.

— Só um instante — pediu Elayne. — Aviendha, por que vieram até aqui e enfrentaram tantas dificuldades?

Aviendha sacudiu a cabeça, indignada.

— Não chegamos nem um pouco longe, fomos as últimas a partir. As Sábias me acossaram feito cães selvagens em volta de um novilho, afirmando que eu tinha outras obrigações. — De repente ela fez uma careta e apontou para as outras Aiel. — Elas ficaram para trás para zombar da minha desgraça, pelo que disseram, mas acho que as Sábias não teriam me deixado partir se elas não estivessem lá para me acompanhar.

— Procuramos o Prenunciado — completou Bain. Ela segurava Dailin enquanto Chiad vestia uma camisa de linho marrom na mulher adormecida. — Aquele Que Vem Com a Aurora.

— Ele vai nos guiar para fora da Terra da Trindade — acrescentou Chiad. — As profecias dizem que ele nasceu das Far Dareis Mai.

Elayne parecia perplexa.

— Pensei que tivessem dito que não era permitido que as Donzelas da Lança tivessem filhos. Tenho certeza de que foi isso que aprendi.

Bain e Chiad trocaram mais uma vez aquele olhar, como se Elayne tivesse chegado perto da verdade, mas tivesse entendido tudo errado.

— Se uma Donzela dá à luz um filho — explicou Aviendha, com muita calma —, entrega a criança às Sábias de seu ramo, que a entregam para outra mulher, de modo que ninguém pode saber de quem é a criança. — Ela também soava como se estivesse explicando que as pedras são duras. — Toda mulher deseja adotar uma criança dessas, na esperança de criar Aquele Que Vem Com a Aurora.

— Ou ela pode abrir mão da lança e se casar com o pai — completou Chiad.

Bain acrescentou:

— Às vezes uma mulher tem suas razões para abrir mão da lança.

Aviendha lançou às duas um olhar firme, mas prosseguiu como se elas não tivessem dito nada.

— Só que agora as Sábias disseram que ele será encontrado aqui, além da Muralha do Dragão. “Sangue do nosso sangue misturado com o sangue antigo, criado por um sangue ancestral que não é nosso.” Não compreendo, mas as Sábias falaram de uma forma que não deixou dúvidas. — Ela hesitou, claramente escolhendo bem as palavras seguintes. — Você já fez muitas perguntas, Aes Sedai. Também quero fazer uma. Precisam entender que procuramos sinais e presságios. Por que três Aes Sedai caminham por uma terra onde a única mão que não carrega uma faca o faz porque está fraca demais, pela fome, para pegar no cabo? Para onde vão?