— Elas vão demorar horas para acordar. — Quem afirmou foi um sujeito gordo, com a voz rouca e um sorriso de desprezo que não tinha um dos dentes. — Minha vovó que me ensinou sobre aquele troço que demos para elas. Vão dormir até amanhã, e ele vai chegar muito antes disso.
Egwene mexeu a língua na boca e sentiu o gosto de vinho azedo e o amargor. Seja lá o que for isso, sua vovó mentiu. Ela deveria é ter estrangulado você no berço! Antes que esse tal de “ele” chegasse, esse homem que achava que podia comprar uma Aes Sedai — que nem um maldito Seanchan! —, Nynaeve e Elayne já estariam acordadas. Ela rastejou até Nynaeve.
Pelo que podia perceber, ela estava dormindo, então apenas começou a sacudi-la. Para sua surpresa, a amiga arregalou os olhos.
— O quê…?
Ela tapou a boca de Nynaeve com a mão a tempo de impedi-la de falar.
— Somos prisioneiras — sussurrou. — Tem mais de doze homens do outro lado daquela parede, e mais ainda do lado de fora. Muitos mais. Deram alguma coisa para fazer a gente dormir, mas não tiveram muito sucesso. Já conseguiu lembrar?
Nynaeve afastou a mão de Egwene.
— Consegui. — A voz era baixa e soturna. Ela fez uma careta, apertou a boca e de repente soltou uma risada quase silenciosa. — Raiz de dorme-bem. Os idiotas nos deram a raiz misturada com vinho. Vinho quase avinagrado, pelo gosto. Rápido, você se lembra de alguma coisa do que eu ensinei? O que faz a raiz de dorme-bem?
— Faz passar a dor de cabeça, para podermos dormir — respondeu Egwene, também baixinho. E sua voz soava quase tão taciturna quanto baixa, até que percebeu o que dizia. — Provoca um pouco de sonolência, mas só. — O gordo não prestara muita atenção aos ensinamentos da vovó. — Eles só ajudaram a tratar a dor da pancada que levamos.
— Exatamente — respondeu Nynaeve. — E, depois que acordarmos Elayne, vamos lá agradecê-los de um jeito que eles não vão esquecer. — Ela se levantou e agachou ao lado da mulher de cabelos dourados.
— Acho que vi mais de cem lá fora, quando nos trouxeram para cá — sussurrou Egwene, atrás de Nynaeve. — Tenho certeza de que você não vai se importar se eu usar o Poder como arma, dessa vez. E parece que tem alguém vindo nos comprar. Pretendo dar uma lição nesse sujeito que vai fazê-lo andar sob a Luz até o último dia da vida! — ameaçou. Nynaeve ainda estava agachada ao lado de Elayne, mas nenhuma das duas se movia. — Qual é o problema?
— Ela está muito ferida, Egwene. Acho que quebrou a cabeça, mal está respirando. Egwene, ela está morrendo, assim como Dailin.
— Você não pode fazer alguma coisa? — Egwene tentou se lembrar de todos os fluxos que Nynaeve combinara para curar a Aiel, mas conseguia se recordar no máximo de uma trama em cada três. — Você precisa!
— Eles levaram as minhas ervas — resmungou Nynaeve, furiosa, a voz trêmula. — Não vou conseguir! Não sem as ervas! — Egwene ficou chocada ao perceber que Nynaeve estava à beira das lágrimas. — Que a Luz queime a todos, eu não consigo sem…! — De repente, ela agarrou os ombros de Elayne, como se desejasse erguer a mulher inconsciente e sacudi-la. — Que a queime, garota. — A voz dela soava rouca. — Não trouxe você até aqui para morrer! Devia ter deixado você esfregando panelas! Devia ter amarrado você num saco e entregado para Mat levar até a sua mãe! Não vou deixar você morrer nas minhas mãos! Está ouvindo? Não vou deixar! — Saidar de repente brilhou ao redor dela, e os olhos e a boca de Elayne se escancararam.
Egwene pôs a mão por cima da boca de Elayne no que pensou ser bem a tempo de abafar qualquer som, mas, ao tocar a mulher inconsciente, a contracorrente da Cura de Nynaeve a agarrou como palha em um redemoinho. Ela congelou até os ossos, e o calor causticante que vinha de fora parecia queimar sua carne. O mundo inteiro desapareceu em uma sensação de arremetida, queda, voo e giro.
Quando finalmente terminou, ela respirava com dificuldade e encarava Elayne, que a olhava de volta por trás das mãos com que Egwene cobrira a sua boca. O que restava da dor de cabeça de Egwene se fora. Mesmo o ricochete do que Nynaeve fizera parecia ter sido suficiente para aquilo. O murmúrio de vozes no outro cômodo não ficara mais alto. Se Elayne, ou mesmo Egwene, tinha feito algum barulho, Adden e os outros não repararam.
Nynaeve estava de quatro no chão, com a cabeça baixa, trêmula.
— Luz! — murmurou. — Fazer isso assim… foi como arrancar… minha própria pele. Ah, Luz! — Ela olhou para Elayne. — Como está se sentindo, garota?
Egwene tirou as mãos da boca de Elayne.
— Cansada — murmurou Elayne. — E com fome. Onde estamos? Vi uns homens com fundas…
Em poucas palavras¸ Egwene contou o que acontecera. O rosto de Elayne começou a ficar sério muito antes de a história terminar.
— E agora — acrescentou Nynaeve, a voz firme como ferro — vamos mostrar a esses grosseirões o que acontece quando mexem com a gente. — Saidar brilhou em volta dela mais uma vez.
Elayne ainda estava se levantando, cambaleante, mas o brilho tênue também a envolveu. Egwene estava quase alegre quando tocou a Fonte Verdadeira.
Quando olharam outra vez pela rachadura, para saber exatamente com o que teriam de lidar, viram que três Myrddraal haviam chegado.
Os trajes negros como a morte pendiam, anormalmente imóveis. Todos os homens, exceto Adden, haviam se afastado o máximo possível, até encostarem nas paredes, e mantinham os olhares fixos no chão de terra. De frente para o Myrddraal, do outro lado da mesa, Adden encarava de volta aquele olhar sem olhos, mas o suor escorria em bicas, limpando parte da terra em seu rosto.
O Desvanecido pegou um anel que estava em cima da mesa. Egwene percebeu que aquele era de um aro de ouro muito mais grosso que os anéis da Grande Serpente.
Com o rosto espremido na rachadura entre dois troncos, Nynaeve arquejou baixinho e apalpou as costas do vestido.
— Três Aes Sedai — sibilou o Meio-homem. Sua satisfação soava como corpos mortos se transformando em cinzas. — E uma delas levava isso. — O anel desabou com um baque pesado quando o Myrddraal o jogou de volta na mesa.
— São elas que procuro — disse outro, com a voz rouca. — Será bem recompensado, humano.
— Temos que pegá-los de surpresa — disse Nynaeve, baixinho. — Que tipo de cadeado tem na porta?
Egwene mal conseguia ver o cadeado do lado de fora da porta, uma coisa de ferro presa a uma corrente forte o bastante para conter um touro enfurecido.
— Fiquem a postos — disse.
Ela afinou um fluxo de Terra até torná-lo mais fino que um fio de cabelo, torcendo para os Meios-homens não perceberem uma canalização tão pequena, e o combinou às menores partículas da corrente de ferro.
Um dos Myrddraal ergueu a cabeça. Outro se inclinou por cima da mesa, na direção de Adden.
— Sinto uma comichão, humano. Tem certeza de que elas estão dormindo? — Adden engoliu em seco e assentiu com a cabeça.
O terceiro Myrddraal se virou para encarar a porta do quarto onde Egwene e as outras estavam agachadas.
A corrente caiu no chão, o Myrddraal que estava virado para ela soltou um rosnado, e a porta de fora foi escancarada. Era a morte, coberta em véus negros, vindo da noite.
O recinto irrompeu em brados e gritos enquanto os homens agarravam as espadas para enfrentar as lanças Aiel. Os Myrddraal desembainharam lâminas mais negras que as roupas que usavam e também lutaram por suas vidas. Certa vez, Egwene vira seis gatos lutando entre si, mas ali havia centenas. Mesmo assim, em questão de segundos fez-se silêncio total. Ou quase total.
Todos os humanos que não usavam véus negros jaziam mortos, atravessados por lanças, e Adden estava pregado à parede por uma delas. Dois Aiel também estavam caídos, imóveis, entre a confusão de mortos e de mobília revirada. Os três Myrddraal estavam de costas uns para os outros, as espadas negras nas mãos. Um deles apertava um dos lados do corpo, como se estivesse ferido, embora não houvesse sinal de ferimento. Outro exibia um corte comprido no rosto pálido, mas não sangrava. Cinco Aiel com os rostos cobertos pelos véus estavam agachados, andando em círculos ao redor dos Desvanecidos. Do lado de fora, gritos e sons metálicos informavam que outros Aiel ainda lutavam noite adentro, mas ali os sons eram mais baixos.