O sujeito proeminente piscou para Nynaeve e coçou a orelha quando ela perguntou se a embarcação era rápida.
— Rápida? Estou cheio dessas madeiras excelentes de Shienar e de tapetes de Kandor. Quem precisa ser rápido com um carregamento desses? Os preços só vão subir. Sim, creio que haja navios mais velozes atrás de mim, mas eles não atracarão por aqui. Eu mesmo não teria atracado se não tivesse encontrado larvas na carne. Que ideia idiota achar que teriam carne para vender em Cairhien. O Garça Azul? É, vi Ellisor preocupado com alguma coisa ao norte do rio hoje de manhã. Ele não vai zarpar tão cedo, eu acho. É isso que dá seguir em um navio veloz.
Nynaeve pagou as passagens — e em dobro, por causa dos cavalos — com uma expressão que fez Egwene e Elayne evitarem falar com ela até bem depois que o Flechador já estivesse longe de Jurene.
40
Um Herói na Noite
Apoiado no gradil, Mat observou a cidade murada de Aringill ficar mais próxima enquanto os remos empurravam o Gaivota Cinzenta em direção ao píer de madeira. Protegidas por altos muros de pedra que avançavam até o rio, as docas fervilhavam de gente, e mais passageiros desembarcavam dos navios de diversos tamanhos atracados por toda a extensão do píer. Algumas pessoas empurravam barris e puxavam trenós ou carroças de rodas altas, levando pilhas de mobília e baús bem presos, mas a maioria apenas carregava algumas trouxas nas costas, quando muito. Nem todos pareciam apressados. Muitos homens e mulheres se aglomeravam, indecisos, com crianças chorosas agarradas às pernas. Soldados de casacos vermelhos e placas peitorais reluzentes tentavam fazê-los sair dos desembarcadouros e ir para a cidade, mas a maioria parecia assustada demais para se mexer.
Mat se virou e protegeu os olhos do sol para observar o rio de onde vinham. Essa parte do Erinin era mais movimentada do que ao sul de Tar Valon, com uma dezena de embarcações se movendo, que ele podia ver, desde um barquinho de proa pontuda avançando depressa rio acima, contra a corrente, empurrado por duas velas triangulares, até um largo navio de proa e velas quadradas, ainda bem ao norte.
No entanto, quase metade dos navios à vista nada tinha a ver com o comércio do rio. Duas embarcações largas e de deques vazios seguiam lentamente pelo rio em direção a uma cidade menor na margem oposta, enquanto outras três voltavam para Aringill, todas com o convés tão abarrotado que mais pareciam um barril de peixes. O sol poente, ainda bem acima do horizonte, encobria em sombras um estandarte que esvoaçava sobre essa outra cidade. Aquele lado do rio era a costa de Cairhien, mas ele não precisava enxergar o estandarte para saber que a figura era a do Leão Branco de Andor. Escutara bastante falatório nas poucas aldeias andorianas onde o Gaivota Cinzenta fizera suas breves paradas.
Ele sacudiu a cabeça. Política não lhe interessava. Desde que não tentem me dizer mais uma vez que sou andoriano só por causa de um mapa qualquer. Que me queime, daqui a pouco vão querer que eu lute naquele maldito exército, se esse negócio cairhieno se espalhar. E seguindo ordens! Luz! Com um calafrio, ele se virou na direção de Aringill. Os homens descalços no Gaivota Cinzenta aprontavam as cordas para jogar aos que aguardavam no cais.
O Capitão Mallia o observava de longe, perto timão. O sujeito jamais abandonara os esforços de cair em suas graças, muito menos as tentativas de descobrir que missão tão importante era aquela. Mat por fim mostrara a carta selada, contando que era da Filha-herdeira para a Rainha. Uma mensagem pessoal de uma filha para sua mãe, nada mais. Mallia parecia ouvir apenas as palavras “Rainha Morgase”.
Mat sorriu para si mesmo. Um bolso fundo em seu casaco guardava duas bolsas ainda mais gordas do que estavam quando ele embarcara, e ele tinha moedas soltas o suficiente para encher outras duas. Sua sorte não fora tão boa quanto naquela primeira e estranha noite, quando os dados e todo o restante pareciam ter enlouquecido, mas ainda assim havia sorte. Depois da terceira noite, Mallia desistira de tentar demonstrar sua cordialidade aceitando jogar, mas seu baú de dinheiro já estava mais leve. E ficaria ainda mais depois de Aringill. Mallia precisava reabastecer as provisões ali — Mat examinou a confusão de pessoas no píer —, se fosse possível, a qualquer preço.
Quando voltou os pensamentos para a carta, o sorriso morreu. Com apenas uma forçadinha com uma faca de lâmina quente, o selo de lírio dourado se desprendera. Não descobrira nada: Elayne estava estudando muito, fazendo progressos e ansiosa para aprender. Era uma filha muito dedicada, e o Trono de Amyrlin a punira por fugir e a mandara jamais tocar no assunto outra vez, por isso a mãe entenderia por que ela não podia falar sobre o que acontecera. A jovem contou que fora elevada a Aceita, não era maravilhoso ter acontecido assim, tão cedo? E também disse que novas tarefas eram confiadas a ela, que teria que sair de Tar Valon por um breve período a serviço da própria Amyrlin. A mãe não precisava se preocupar.
Era muito fácil para ela dizer a Morgase que não se preocupasse. Ele é quem fora enfiado no caldeirão de sopa. Aquela carta idiota devia ser a razão para aqueles homens terem ido atrás dele, mas nem mesmo Thom conseguira desvendar algo, embora tivesse resmungado sobre “criptogramas”, “códigos” e “o Jogo das Casas”.
Mat guardara a carta em segurança sob o forro do casaco, com o selo de volta no lugar, e apostaria que ninguém jamais desconfiaria que ele a tinha lido. Se quisessem tanto assim pôr as mãos na carta, a ponto de matá-lo, era possível que tentassem outra vez. Eu disse que entregaria essa maldita carta, Nynaeve, e vou, não importa quem tente me impedir. Mesmo assim, tinha algumas palavrinhas para dizer àquelas três mulheres irritantes, da próxima vez que as visse — Isso se eu chegar a vê-las de novo. Luz, nunca tinha pensado nisso —, palavras que achava que elas não gostariam nada de ouvir.
Enquanto os tripulantes lançavam as cordas no píer, Thom chegou ao convés, os estojos dos instrumentos nas costas e a trouxa em uma das mãos. Mesmo mancando, caminhou até o gradil empertigado, dando leves floreios com o manto para fazer os retalhos coloridos tremularem e soprando o bigode longo e branco com ares de importância.
— Ninguém está olhando, Thom — comentou Mat. — E acho que mal reparariam num menestrel, a não ser que ele estivesse levando comida.
Thom olhou para as docas.
— Luz! Ouvi dizer que a coisa estava feia, mas não esperava isso! Pobres coitados. Metade deles parece estar morrendo de fome. Pode ser que arranjar um quarto para passar a noite nos custe uma dessas suas bolsas. E a outra por uma refeição, se for do tamanho das outras que você tem comido. Quase passei mal só de assistir. Se tentar comer daquele jeito às vistas desse pessoal aí embaixo, pode levar uma sova até seus miolos saltarem da cabeça.
Em resposta, Mat apenas sorriu.
Mallia cruzou o convés a passos pesados, puxando a ponta da barba, enquanto o Gaivota Cinzenta era levado para atracar. Tripulantes correram para armar a prancha de desembarque, onde Sanor montou guarda, os braços fortes cruzados na frente do peito caso a multidão no píer tentasse embarcar. Ninguém tentou.
— Então nos separamos aqui — começou Mallia, dirigindo-se a Mat. O sorriso do capitão não era tão animado quanto poderia. — Têm certeza de que não há nada mais que eu possa fazer para ajudar? Que a minha alma queime, nunca vi tamanha ralé! Esses soldados deveriam limpar as docas… E com as espadas, se necessário. Assim os mercadores decentes poderiam fazer seus negócios. Talvez Sanor possa ajudá-los abrindo caminho entre essa gente até a sua estalagem.
Para que você saiba onde vamos ficar? Sem chance.