— Talvez esteja sendo injusta com ele — sussurrou Moiraine.
Perrin encarou o capuz escuro. Ela parecia abalada, mais até do que quando pensou que um novo falso Dragão surgira em Ghealdan. Ele não conseguia sentir cheiro de medo, mas… Moiraine estava assustada. Aquilo era muito mais aterrorizante do que pensar em Moiraine irritada. Ele podia imaginá-la irritada, mas não conseguia nem começar a concebê-la assustada.
— Como sou tagarela — comentou Nieda, batendo no coque em sua nuca. — Como se meus sonhos tolos pudessem ter importância. — Ela soltou outra risadinha. Mais rápida, pois aquilo não era tão besta quanto acreditar na neve. — A senhora parece cansada, Senhora Mari. Vou levar vocês para os quartos. E depois darei uma boa refeição com rajado-vermelho recém-pescado.
Rajado-vermelho? Um peixe, pensou Perrin. Sentia cheiro de peixe cozido.
— Quartos — concordou Moiraine. — Sim. Queremos os quartos. A refeição pode esperar. Navios. Nieda, que navios estão indo para Tear? De manhã bem cedo. Preciso fazer uma coisa esta noite. — Lan olhou para ela de rosto franzido.
— Tear, Senhora Mari? — Nieda riu. — Ora, nenhum para Tear. Os Nove proibiram todos os navios daqui de partirem para Tear e todos os navios vindos de lá de passarem por aqui faz um mês hoje, mas eu acho que o Povo do Mar está pouco ligando para isso. Mas nem há navios do Povo do Mar no porto. Sim, isso, no caso, é estranho. A ordem dos Nove, quer dizer, e o silêncio do Rei a respeito, já que ele sempre levanta a voz para quem dá um passo sem seu comando. Ou talvez nem seja isso, exatamente. Sim, de fato só se fala sobre a guerra em Tear, mas os barqueiros e carroceiros que abastecem o exército de provisões no caso dizem que os soldados todos olham para o norte, para Murandy.
— Os caminhos da Sombra são confusos — comentou Moiraine, com a voz severa. — Faremos o que for preciso. Os quartos, Nieda. E depois vamos comer aquela refeição.
O quarto de Perrin era mais confortável do que ele esperava, pela aparência do restante do Texugo. A cama era larga, e o colchão, macio. A porta era feita de ripas inclinadas, e uma brisa cruzou o quarto quando ele abriu as janelas, trazendo os aromas do porto. E também algo dos canais, mas pelo menos era refrescante. Ele pendurou o manto em um pino, com o machado e a aljava, e apoiou o arco em um canto. Tudo o mais deixou nos alforjes e no cobertor. Talvez aquela não fosse uma noite tranquila.
Se Moiraine soara assustada antes, não foi nada comparado a quando ela disse que precisava fazer algo aquela noite. Por um instante, a mulher exalara um cheiro de medo, como se acabasse de anunciar que enfiaria a mão em um ninho de vespas e o esmagaria com os próprios dedos. O quê, pela Luz, ela está tramando? Se Moiraine está com medo, eu deveria estar em pânico.
Mas ele percebeu que não estava. Nem em pânico e nem sequer assustado. Sentia-se… ansioso. Pronto para que algo acontecesse, quase ávido. Determinado. Reconhecia os sentimentos. Era o que os lobos sentiam imediatamente antes de uma luta. Que me queime, preferia estar com medo!
Foi o primeiro a descer de volta para o salão, depois de Loial. Nieda preparara uma grande mesa para eles, com cadeiras com encosto de ripas em vez de bancos. Encontrara até uma cadeira do tamanho de Loial. A garota do outro lado do salão entoava uma canção sobre um rico mercador que, depois de perder os cavalos de uma forma improvável, decidira, por alguma razão, puxar a própria carruagem. Os homens que a escutavam se dobravam em gargalhadas, urrando. As janelas mostravam a escuridão se aproximando mais depressa do que ele esperava. Pelo cheiro no ar, havia uma chuva a caminho.
— Esta estalagem tem um quarto para Ogier — comentou Loial, enquanto Perrin se sentava. — Parece que todas as estalagens de Illian têm, na esperança de atrair a clientela Ogier quando os alveneiros aparecem por aqui. Nieda disse que é sinal de boa sorte ter um Ogier sob seu teto. Acho que não aparecem muitos por aqui. Os alveneiros sempre ficam juntos quando viajam a trabalho. Humanos são tão impacientes, e os Anciões estão sempre com medo que os nervos se aflorem e alguém resolva enfiar um cabo longo no machado. — Ele olhou os homens ao redor da cantora como se suspeitasse que fizessem aquilo. Suas orelhas murcharam outra vez.
O rico mercador estava a ponto de perder a carruagem, arrancando mais gargalhadas da plateia.
— Consegui descobrir se tem algum Ogier do Pouso Shangtai aqui em Illian?
— Tinha, mas Nieda disse que foram embora durante o inverno. Disse que não concluíram o trabalho. Não entendo. Os alveneiros não deixariam um trabalho incompleto, a não ser que não fossem pagos, e Nieda disse que não foi o caso. Certa manhã, eles simplesmente sumiram, mas alguém os viu atravessando o Passadiço de Maredo à noite. Perrin, não gosto desta cidade. Não sei por quê, mas ela me deixa… pouco à vontade.
— Ogier — explicou Moiraine — são sensíveis a algumas coisas. — Ela ainda mantinha o rosto encoberto, mas Nieda devia ter enviado alguém para comprar um manto leve de linho azul-escuro para ela. O cheiro de medo se dissipara, mas sua voz soava extremamente controlada. Lan segurava a cadeira para ela, os olhos transparecendo preocupação.
Zarine foi a última a descer, passando os dedos pelos cabelos lavados. O perfume herbal que ela emanava estava ainda mais forte. Ela olhou para a travessa que Nieda pôs sobre a mesa e resmungou entre dentes:
— Odeio peixe.
A mulher robusta trouxera toda a comida em um carrinho com prateleiras. Ele estava empoeirado em alguns pontos, como se tivesse sido retirado às pressas do depósito por respeito à Moiraine. E os pratos eram de porcelana do Povo do Mar, ainda que lascados.
— Coma — retorquiu Moiraine, encarando Zarine. — Lembre-se de que qualquer refeição pode ser a sua última. Você decidiu viajar conosco, então esta noite comerá peixe. Pode ser que morra amanhã.
Perrin não reconheceu o peixe branco e quase redondo rajado de vermelho, mas o cheiro era bom. Pôs dois pedaços no prato com o garfo de servir, sorrindo para Zarine com a boca cheia. O gosto também era bom, um pouco apimentado. Coma a droga do peixe, falcão, pensou. Também pensou que, pela expressão de Zarine, ela estava a ponto de mordê-lo.
— Quer que eu mande a garota parar de cantar, Senhora Mari? — perguntou Nieda. Ela servia tigelas de ervilhas e algum tipo de mingau duro e amarelo na mesa. — Para que comam sossegados?
Com os olhos fixos no prato, Moiraine pareceu não ouvir.
Lan escutou por um instante: o mercador já perdera, em sequência, a carruagem, a capa, as botas, o ouro e todo o restante das roupas, e agora estava reduzido a ter que matar um porco para jantar. O homem então sacudiu a cabeça.
— Ela não vai nos incomodar. — Por um momento, pareceu prestes a dar um sorriso, até olhar para Moiraine. Logo em seguida, a preocupação retornou a seus olhos.
— O que há de errado? — perguntou Zarine, ignorando o peixe. — Sei que alguma coisa está errada. Não vejo tanta expressão nesse seu rosto desde que o conheci, cara de pedra.
— Sem perguntas! — interrompeu Moiraine, ríspida. — Você vai saber o que eu contar, e nada mais!
— O que é que você vai me contar? — inquiriu Zarine.
A Aes Sedai sorriu.
— Coma seu peixe.
Depois daquilo, a refeição prosseguiu quase em silêncio, exceto pelas canções que ecoavam pelo salão. Uma sobre um homem rico cuja mulher e filhas o faziam de idiota o tempo inteiro, sem nunca esvair sua arrogância. Outra que falava de uma jovem mulher que decidira dar um passeio sem roupa alguma no corpo, e mais uma que contava sobre um ferreiro que conseguira pôr uma ferradura em si mesmo, não no cavalo. Zarine quase engasgou rindo dessa última, e perdeu a compostura o suficiente para abocanhar um pedaço de peixe. De repente, fez uma careta, como se tivesse enfiado lama na boca.