Não vou rir dela, disse Perrin a si mesmo. Por mais boba que ela pareça, vou mostrar a ela um pouco de boas maneiras.
— Está uma delícia, não é? — comentou.
Zarine lançou um olhar amargo em resposta, e Moiraine olhou de cara feia por ele ter interrompido seus pensamentos. Foi a única conversa daquela refeição.
Nieda estava retirando os pratos e arrumando uma bandeja de queijos na mesa quando o fedor de algo repugnante eriçou os pelos da nuca de Perrin. Era um cheiro de algo que não deveria ser, e ele já o sentira duas vezes antes. Ele olhou em volta do salão, incomodado.
A garota continuava a cantar para o amontoado de ouvintes, alguns homens caminhavam perto da porta, e Bili ainda estava encostado na parede, batendo o pé aos sons da sabiola. Nieda deu um tapinha no cabelo enrolado, lançou uma breve olhada para o salão e se virou para levar o carrinho.
Ele olhou os companheiros. Loial, como esperado, puxara um livro do bolso do casaco e parecia ter se esquecido de onde estava. Zarine, mexendo distraída em um pedaço de queijo, encarou primeiro Perrin, depois Moiraine, depois Perrin outra vez, tudo isso enquanto tentava disfarçar. Mas era em Lan e Moiraine que ele estava de fato interessado. Eles eram capazes de sentir um Myrddraal, um Trolloc ou qualquer Criatura da Sombra a mais de cem passos de distância. Mas a Aes Sedai mantinha o olhar distante, fixo à mesa diante dela, e o Guardião cortava um naco de queijo amarelo enquanto a observava. Ainda assim, o cheiro de algo errado estava lá, como em Jahra e na fronteira de Remen, e dessa vez não ia embora. Parecia vir de algo dentro do salão.
Ele analisou o aposento outra vez. Bili estava encostado na parede, alguns homens cruzavam o salão, a moça cantava em cima da mesa, os homens gargalhavam ao redor dela. Homens cruzando o salão? Ele olhou para eles, o rosto franzido. Seis homens de feições comuns, indo na direção em que ele estava sentado. Feições muito comuns. Acabara de recomeçar a analisar os sujeitos que ouviam a moça cantar, quando de repente lhe ocorreu que o fedor de algo errado estava emanando daqueles seis. De repente, adagas surgiram nas mãos deles, como se os homens tivessem percebido que Perrin reparara neles.
— Eles têm facas! — vociferou, jogando a travessa de queijos nos homens.
O salão irrompeu em confusão, homens aos berros, a cantora gritando, Nieda gritando por Bili, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Lan deu um salto ficando de pé, uma bola de fogo saltou da mão de Moiraine, Loial agarrou a cadeira como um porrete, e Zarine se desviou para um dos lados, xingando. Ela também tinha uma faca em mãos, mas Perrin estava muito ocupado para ficar reparando no que os outros estavam fazendo. Aqueles homens pareciam olhar diretamente para ele, e seu machado estava pendurado em um pino lá em cima, no quarto.
Ele puxou uma cadeira, arrancou um dos grossos pés que formavam um dos apoios do encosto, arremessou a carcaça nos homens e partiu, determinado, agarrado ao longo cassetete. Eles tentavam alcançá-lo como se Lan e os outros fossem apenas obstáculos no caminho. Estavam todos muito próximos, então tudo o que ele podia fazer era afastar as lâminas, e os movimentos largos do cassetete ameaçariam tanto Lan, Loial e Zarine quanto qualquer um dos seis agressores. De soslaio, viu Moiraine em um dos cantos, a frustração estampada no rosto: estavam tão embolados que não havia nada que ela pudesse fazer sem ameaçar tanto amigos quanto inimigos. Nenhum dos sujeitos que manejavam as facas sequer olhava para ela, já que a Aes Sedai não estava entre eles e Perrin.
Ofegante, ele conseguiu acertar um dos homens de aparência comum bem no meio da cabeça, com tanta força que ouviu o osso rachar, e de repente percebeu que estavam todos caídos. Parecia que tudo aquilo durara um quarto de hora ou mais, mas notou que Bili acabara de chegar, as mãos enormes se preparando enquanto ele olhava os seis homens caídos no chão. Bili não tivera tempo de chegar à briga antes que ela acabasse.
Lan, com uma expressão ainda mais sombria que a habitual, começou a revistar os corpos minuciosamente, mas com uma rapidez que revelava sua repugnância. Loial ainda segurava a cadeira erguida e, com um susto e um sorriso encabulado, a pousou de volta no chão. Moiraine olhava para Perrin, assim como Zarine, que recuperava a faca do peito de um dos homens mortos. O fedor de algo errado se dissipara, como se tivesse morrido com os agressores.
— Homens Cinza — murmurou a Aes Sedai —, e atrás de você.
— Homens Cinza? — Nieda soltou uma risada alta e nervosa. — Ora, Senhora Mari, só falta a senhora dizer que acredita em assombrações, urso-papão Espectros e o Velho Ceifador com seus cães negros na Caçada Selvagem. — Alguns dos homens que estavam escutando as músicas também riram, embora parecessem tão incomodados com Moiraine quanto com os homens mortos. A cantora olhou para Moiraine, também, com os olhos arregalados. Perrin lembrou-se daquela única bola de fogo, antes de todos se amontoarem. Um dos Homens Cinza tinha um aspecto meio chamuscado e exalava um cheiro enjoativo de queimado.
Moiraine virou-se de Perrin para a mulher robusta.
— Um homem pode caminhar na Sombra — retrucou, com muita calma — sem ser uma Criatura da Sombra.
— Ah, sim, Amigos das Trevas. — Nieda pôs as mãos nos generosos quadris e encarou os corpos com o cenho franzido. Lan terminara a revista. Ele olhou para Moiraine e balançou a cabeça, como se confirmasse suas esperanças de que não encontraria coisa alguma. — Devem ser é ladrões, mesmo que, no caso, eu nunca tenha ouvido falar de ladrões atrevidos a ponto de entrar numa estalagem. E nunca tive uma morte sequer aqui no Texugo. Bili! Vá se livrar desses sujeitos, jogue num canal e despeje serragem nova. Pela porta dos fundos, veja bem. Eu, no caso, nem quero a Guarda metendo aqueles narizes compridos dentro do Texugo. — Bili assentiu, como se estivesse ansioso para ser útil, depois de ter falhado em ajudar. Ele agarrou um homem morto em cada mão, pelo cinturão, e os arrastou em direção à cozinha.
— Aes Sedai? — perguntou a cantora de olhos escuros. — Não quis ofendê-la com minhas canções de salão. — Ela cobria com as mãos a parte exposta do colo, que era quase tudo. — Posso cantar outras, se os senhores preferirem.
— Pode cantar o que quiser, garota — respondeu Moiraine. — A Torre Branca não está tão isolada do mundo quando pensa, e já ouvi canções mais grosseiras do que você poderia cantar. — Mesmo assim, ela não parecia satisfeita por o salão saber que era uma Aes Sedai. Olhou para Lan, ajeitou o manto de linho no ombro e foi caminhando até a porta.
O Guardião se moveu bem depressa para interceptá-la, e os dois conversaram baixinho diante da porta, mas Perrin era capaz de escutá-los como se conversassem bem ao lado dele.
— Pretende ir sem mim? — perguntou Lan. — Eu jurei mantê-la inteira, Moiraine, quando aceitei o elo.
— Você sempre soube que existem alguns perigos que não está em condições de enfrentar, meu Gaidin. Tenho que ir sozinha.
— Moiraine…
Ela o interrompeu:
— Preste atenção, Lan. Se eu falhar, você vai saber, e então será obrigado a voltar à Torre Branca. Eu não mudaria isso, ainda que tivesse tempo. Não quero que você morra em uma tentativa vã de me vingar. Leve Perrin com você. Parece que a Sombra me fez ver a importância dele no Padrão de uma forma muito clara. Eu fui uma tola. Rand é um ta’veren tão forte que ignorei o significado de ele manter dois outros tão perto de si. Com Perrin e Mat, a Amyrlin ainda pode ser capaz de afetar o curso dos acontecimentos. Com Rand à solta, ela vai ter que fazer isso. Conte a ela o que aconteceu, meu Gaidin.
— Você fala como se já estivesse morta — retrucou Lan, de forma rude.
— Há de ser o que a Roda tecer, e a Sombra obscurece o mundo. Preste atenção, Lan, e obedeça, como jurou fazer. — Com isso, ela partiu.