— O que você vai fazer? — perguntou Perrin.
— Vou atrás de Moiraine. Contar sobre o Cão das Trevas. Ela não pode ficar irritada comigo por isso, não se sabe que não poderia notá-lo até ser agarrada pela garganta.
Os primeiros pingos grossos de chuva começaram a bater nas pedras da calçada enquanto eles voltavam para dentro. Bili removera o último Homem Cinza morto e varria a serragem onde havia sangue. A moça de olhos escuros entoava uma canção triste sobre um rapaz que deixava seu amor. A Senhora Luhhan teria gostado bastante.
Lan correu na frente, atravessou o salão e subiu as escadas. Quando Perrin chegou ao segundo andar, o Guardião já estava descendo, afivelando o cinturão, com o manto que mudava de cor pendendo de um dos braços, como se ele não se importasse com quem o veria.
— Se ele está usando isso na cidade… — Os cabelos desgrenhados de Loial quase espanaram o teto quando ele balançou a cabeça. — Não sei se vou conseguir dormir, mas vou tentar. Sonhar vai ser mais agradável do que ficar acordado.
Nem sempre, Loial, pensou Perrin, enquanto o Ogier cruzava o corredor.
Zarine parecia querer ficar com ele, mas Perrin a mandou dormir e fechou a porta na cara dela com força. Encarou a própria cama com relutância, despindo-se até ficar de roupas de baixo.
— Preciso descobrir — suspirou, então deitou na cama. A chuva tamborilava lá fora, os trovões ressoavam. A brisa que entrava pela janela trazia um pouco do frescor da chuva, mas ele achou que não precisaria dos cobertores que estavam no pé do colchão. Seu último pensamento antes que o sono o chamasse foi que se esquecera outra vez de acender uma vela, embora o quarto estivesse escuro. Descuidado. Não posso ser descuidado. O descuido arruína todo o trabalho.
Sonhos corriam por sua cabeça. Cães das Trevas o perseguiam. Ele nunca os via, mas ouvia seus uivos. Desvanecidos e Homens Cinza. Um homem alto e esguio volta e meia surgia entre eles, sumindo depressa, vestindo um casaco com bordados requintados e botas de franjas douradas. Na maior parte do tempo, o homem erguia o que parecia ser uma espada brilhante como o sol e dava uma risada triunfal. Outras vezes, aparecia sentado em um trono, com reis e rainhas curvados diante dele. Eram cenas estranhas, como se não fossem de fato seus sonhos.
Então tudo mudou, e ele soube que estava no sonho com os lobos que buscava. Dessa vez, tinha torcido para encontrá-lo.
Estava no alto de uma torre de pedras, comprida e de topo achatado, o vento bagunçando seus cabelos, trazendo mil aromas secos e um leve sinal de água escondida a distância. Por um instante, pensou que tinha a forma de um lobo. Apalpou o próprio corpo para ter certeza de que o que via era ele mesmo. Usava seu casaco, suas calças e botas e segurava seu arco, a aljava pendia ao lado do corpo. O machado não estava lá.
— Saltador! Saltador! Onde você está? — O lobo não veio.
Havia montanhas escarpadas ao seu redor, assim como outras torres altas, separadas por planícies áridas e cumes desordenados, e em alguns lugares erguiam-se largos platôs com as laterais íngremes. A vegetação crescia, mas não era muito exuberante. Grama curta e dura. Arbustos arrepiados e espinhosos e outras plantas que pareciam ter espinhos até nas folhas encorpadas. Árvores isoladas e atrofiadas, retorcidas pelo vento. Mesmo assim, os lobos conseguiam encontrar caça naquela terra.
Enquanto olhava a paisagem árida, um círculo de escuridão de repente encobriu uma parte das montanhas. Ele não sabia dizer se a escuridão estava bem diante de seu rosto ou a meio caminho das montanhas, mas parecia enxergar através dela e além. Mat, chacoalhando um copo de dados. O oponente encarava Mat com olhos de fogo. Mat não parecia ver o homem, mas Perrin o conhecia.
— Mat! — gritou. — É Ba’alzamon! Luz, Mat, você está jogando com Ba’alzamon!
Mat jogou os dados, e, enquanto eles giravam, a visão desvaneceu, e o lugar escuro foi coberto de montanhas outra vez.
— Saltador! — Perrin se virou devagar, olhando em todas as direções. Até olhou para o céu. Agora ele pode voar. As nuvens prometiam uma chuva que o chão muito abaixo do topo da torre beberia assim que desabasse. — Saltador!
Uma escuridão formou-se entre as nuvens, um vão para outro lugar. Egwene, Nynaeve e Elayne encaravam uma imensa jaula de metal com a porta erguida, presa a uma armadilha pesada. Elas entravam na jaula e estendiam os braços, juntas, para soltar o fecho. A porta de barras caía bruscamente atrás delas. Uma mulher de cabelo todo trançado ria das três, e outra, toda de branco, ria dela. O vão no céu se fechou, e havia apenas nuvens.
— Saltador, onde está você? — chamou. — Preciso de você! Saltador!
O lobo cinzento surgiu, aterrissando no topo da torre como se tivesse saltado de algum ponto mais alto.
Perigoso. Você foi advertido, Jovem Touro. Muito jovem. Muito novo, ainda.
— Preciso saber, Saltador. Você disse que há coisas que eu preciso ver. Preciso ver mais, saber mais. — Ele hesitou, pensando em Mat, Egwene, Nynaeve e Elayne. — As coisas estranhas que vejo aqui. São reais?
A resposta de Saltador parecia vir lentamente, como se fosse tão simples que o lobo não compreendia a necessidade de dá-la, ou como fazer isso. Mas algo finalmente veio.
O que é real não é real. O que não é real, é real. A carne é um sonho, e os sonhos têm carne.
— Isso não me diz nada, Saltador. Não estou entendendo. — O lobo olhou para ele, como se o rapaz tivesse dito que não entendia que a água era molhada. — Você disse que eu precisava ver algo, então me mostrou Ba’alzamon e Lanfear.
Presa-do-Coração. Caçadora-da-Lua.
— Por que me mostrou aquilo, Saltador? Por que eu precisava vê-los?
A Última Caçada está chegando. A resposta veio repleta de tristeza e de uma sensação de inevitabilidade. O que será, terá de ser.
— Não consigo entender! A Última Caçada? Que Última Caçada? Saltador, Homens Cinza tentaram me matar hoje à noite.
Os Não-mortos caçando você?
— Isso! Homens Cinza! Atrás de mim! E um Cão das Trevas estava bem do lado de fora da estalagem! Quero saber por que estão atrás de mim.
Irmãos-das-Sombras! Saltador se agachou e olhou para os lados, como se esperasse um ataque. Há muito tempo não vemos Irmãos-das-Sombras. Precisa ir, Jovem Touro. Grande perigo! Fuja dos Irmãos-das-Sombras!
— Por que eles estão atrás de mim, Saltador? Você sabe. Sei que sabe!
Fuja, Jovem Touro. Saltador pulou, batendo as patas da frente no peito de Perrin, empurrando-o para trás, para a beirada. Fuja dos Irmãos-das-Sombras.
O vento soprou em suas orelhas quando ele caiu. Saltador e o topo da torre diminuíam acima dele.
— Por quê, Saltador? — gritou. — Preciso saber por quê!
A Última Caçada está chegando.
Ele ia bater. Sabia disso. O chão se aproximava depressa, e ele ficou tenso à espera do impacto da queda…
Acordou com um susto, olhando para a vela que bruxuleava sobre a pequena mesa ao lado da cama. Relâmpagos iluminavam a janela, os trovões a sacudiam ruidosamente.
— Como assim a Última Caçada? — murmurou. Não acendi nenhuma vela.
— Você fala sozinho. E se debate dormindo.
Ele deu um salto e maldisse a si mesmo por não ter percebido o perfume herbal no ar. Zarine estava sentada em um banquinho, quase no limite da luz da vela, observando-o com o cotovelo apoiado no joelho e o queixo apoiado no punho.
— Você é ta’veren — disse, como se esclarecesse algo. — O cara de pedra acha que esses seus olhos esquisitos enxergam coisas que os dele não conseguem enxergar. Homens Cinza querem matar você. Você viaja com uma Aes Sedai, um Guardião e um Ogier. Você liberta Aiel enjaulados e mata Mantos-brancos. Quem é você, fazendeiro? O Dragão Renascido? — A voz da moça indicava que aquela era a coisa mais ridícula que ela podia pensar, mas mesmo assim ele mudou de posição, incomodado. — Seja lá quem você for, grandão — acrescentou —, ficaria melhor com um pouco mais de pelos no peito.