Perrin ouviu os arquejos de Zarine e Nieda e só então percebeu o que acabara de dizer. O olhar de Moiraine parecia esfolá-lo como o aço mais afiado do mundo. Língua desgraçada. Quando foi que eu parei de pensar antes de falar? Parecia que havia sido quando sentira pela primeira vez os olhos de Zarine a observá-lo. Ela o observava naquele instante, a boca escancarada.
— Você está ligada a nós, agora — disse Moiraine, olhando para a mulher de rosto forte. — Não há como voltar atrás. Nunca mais. — Zarine parecia querer responder, e também parecia receosa de dizer o que quer que estivesse em sua mente, mas a Aes Sedai já voltara a atenção para o outro lado. — Nieda, saia de Illian hoje à noite. Agora mesmo! E segure essa língua, ainda mais do que segurou por todos esses anos. Alguns podem cortá-la fora, dependendo do que você disser. E o farão antes que eu consiga chegar até você.
O tom severo deixou dúvidas sobre o que ela faria exatamente se chegasse até a outra mulher, e Nieda assentiu com vigor, como se tivesse ouvido tanto a ameaça quanto o aviso.
— Quanto a você, Perrin. — A égua branca aproximou-se, e ele se inclinou para trás e se afastou da Aes Sedai, apesar de ter se convencido de que a enfrentaria. — Há muitos fios tecidos no Padrão, e alguns são tão negros quanto a própria Sombra. Cuide para que um deles não o estrangule. — Ela tocou os flancos de Aldieb com os calcanhares, e a égua saltou para a chuva. Mandarb a seguia bem de perto.
Que a queime, Moiraine, pensou Perrin, enquanto cavalgava atrás deles. Às vezes eu não sei de que lado você está. Ele olhou para Zarine, que cavalgava a seu lado como se tivesse nascido em cima de uma sela. E você, de que lado está?
A chuva mantinha as pessoas longe das ruas e dos canais, por isso parecia que nenhum olho os observava partir, mas também fazia os cavalos caminharem com insegurança pelas ruas de pedras. Quando o grupo chegou ao Passadiço de Maredo, uma ampla via de terra batida e um pouco elevada que atravessava o pântano rumo ao norte, o aguaceiro começara a diminuir. Os trovões ainda ressoavam, mas os raios já reluziam bem longe deles, talvez em alto-mar.
Perrin sentiu que estavam com um pouco de sorte. A chuva se estendera por tempo suficiente para encobrir a partida do grupo, mas no momento parecia que teriam uma noite limpa para cavalgar. Ele expressou o pensamento, mas Lan sacudiu a cabeça em discordância.
— Cães das Trevas gostam mais de céu limpo e noites enluaradas e menos da chuva, ferreiro. Uma boa tempestade pode afugentá-los de vez. — Como se aquelas palavras fossem uma ordem, a chuva virou uma garoa fraca. Perrin ouviu Loial grunhir atrás de si.
O passadiço elevado e o pântano terminavam juntos, a cerca de duas milhas da cidade, mas a estrada continuava, com uma leve curva para o leste. O crepúsculo encoberto pelas nuvens tornou-se noite, e a chuva fina continuava a cair. Moiraine e Lan mantinham o passo firme, cavalgando bem rápido. Os cascos dos cavalos faziam as poças no chão de terra batida respingarem. A lua brilhava por entre as fendas das nuvens. Colinas baixas começavam a se elevar ao redor deles, e as árvores passaram a aparecer cada vez em maior número. Perrin pensou que deveria haver uma floresta mais adiante, mas não sabia ao certo se gostava da ideia. A mata podia escondê-los dos perseguidores, mas a mata também podia permitir que esses mesmos seguidores se aproximassem sem que eles percebessem.
Um uivo agudo foi ouvido atrás deles, bem ao longe. Por um instante, pensou que fosse um lobo. Surpreendeu-se por quase não ser capaz de frear o ímpeto de fazer contato. O uivo se repetiu, e ele soube que não era de um lobo. Outros responderam, todos a milhas de distância, lamentos horripilantes cheios de sangue e morte, gritos que falavam de pesadelos. Para sua surpresa, Lan e Moiraine reduziram a marcha, e a Aes Sedai foi analisando as colinas ao redor, cobertas pela noite.
— Eles estão muito longe — comentou Perrin. — Não vão alcançar a gente se continuarmos avançando.
— Os Cães das Trevas? — murmurou Zarine. — Esses são os Cães das Trevas? Tem certeza de que não é a Caçada Selvagem, Aes Sedai?
— Mas é — respondeu Moiraine. — É.
— Ninguém é capaz de ir mais rápido que os Cães das Trevas, ferreiro — retrucou Lan —, nem mesmo montado no mais veloz dos cavalos. É preciso sempre enfrentá-los e derrotá-los, ou o alcançarão.
— Eu podia ter ficado no pouso, sabe? — comentou Loial. — A esta altura, minha mãe já teria me obrigado a me casar, mas não teria sido uma vida ruim. Muitos livros. Eu não precisava ter vindo aqui para Fora.
— Ali — disse Moiraine, apontando para um montinho sem árvores bem à direita. Não havia qualquer árvore que Perrin pudesse enxergar a duzentos passos ou mais ao redor de onde ela apontava, e mesmo mais ao longe elas eram esparsas. — Precisamos vê-los chegando se queremos ter alguma chance.
Os lúgubres uivos dos Cães das Trevas se fizeram ouvir outra vez, mais perto, porém ainda distantes.
Lan apressou um pouco o ritmo de Mandarb, após Moiraine ter definido a base do grupo. Enquanto subiam a colina, os cascos dos cavalos batiam nas pedras semienterradas na terra, escorregadias por causa da garoa. Aos olhos de Perrin, a maioria das pedras tinha cantos quadrados demais para ser natural. Chegando ao topo, desceram das montarias, espalhados ao redor de um rochedo baixo e arredondado. A lua surgiu por entre uma fenda nas nuvens, e ele pôde ver que estava de frente para um rosto de pedra desgastado pelo tempo, a cerca de dois passos de distância. Um rosto de mulher, imaginou, pelo comprimento dos cabelos. Com a chuva, ela parecia chorar.
Moiraine desmontou da égua e ficou olhando na direção de onde vinham os uivos. Ela era uma silhueta sombria e encapuzada, a água da chuva refletindo o luar ao deslizar por seu manto impermeável.
Loial levou o cavalo até a escultura, para observá-la, depois inclinou-se mais para perto e tateou suas feições.
— Acho que ela era uma Ogier — disse, por fim. — Mas isso aqui não é um pouso antigo. Eu sentiria. Todos sentiríamos. E estaríamos a salvo das Criaturas da Sombra.
— O que é que vocês dois estão olhando aí? — Zarine apertou os olhos em direção à pedra. — O que é isso? Ela? Quem?
— Muitas nações se ergueram e caíram desde a Ruptura — explicou Moiraine, sem se virar. — Algumas não deixaram nada além de nomes em páginas amareladas ou traçados em mapas despedaçados. Será que deixaremos ao menos isso para trás? — Os uivos sedentos por sangue se fizeram ouvir outra vez, ainda mais próximos. Perrin tentou calcular o ritmo em que as criaturas se deslocavam e concluiu que Lan estava certo: os cavalos de fato não conseguiriam deixá-los para trás. Eles não teriam que esperar por mais muito tempo.
— Ogier — comandou Lan —, você e a garota segurem os cavalos. — Zarine protestou, mas ele cavalgou direto até ela. — Suas facas não têm muita serventia aqui, garota. — A lâmina da espada do Guardião reluziu ao luar quando ele a desembainhou. — Até isso aqui é apenas um último recurso. Pelo som, parece que há dez a caminho, não um. Seu trabalho é evitar que os cavalos fujam quando farejarem os Cães das Trevas. Nem mesmo Mandarb gosta desse cheiro.
Se a espada do Guardião não tinha serventia, o machado de Perrin também não. O rapaz sentiu uma espécie de alívio, mesmo que fossem Criaturas da Sombra: não precisaria usar o machado. Desembainhou o arco sem corda das cilhas da sela de Galope.
— Talvez isso aqui ajude.
— Tente se quiser, ferreiro — retrucou Lan. — Eles não morrem com facilidade. Quem sabe você consegue matar algum.