Min pareceu hesitar.
— Eu vi… achei que tinha visto a morte dela. O rosto todo coberto de sangue. Eu tive certeza do que significava, mas se ela abriu a cabeça… tem certeza de que está bem? — A pergunta era um indício de seu desconforto. Uma Aes Sedai nunca deixava nada errado em alguém que acabasse de Curar. Além disso, os Talentos de Cura de Moiraine eram particularmente fortes.
Min soou tão preocupada que Perrin se surpreendeu por um instante. Em seguida, assentiu para si mesmo. Ela não gostava de fazer o que fazia, mas era parte dela, e acreditava saber como aquilo funcionava, pelo menos um pouco. Se estivesse errada, seria quase como descobrir que não sabia usar as próprias mãos.
Moiraine refletiu por um momento, serena e controlada.
— Você nunca errou em qualquer uma das leituras que fez para mim, não em uma ocasião em que eu tivesse como saber. Talvez essa seja a primeira vez.
— Quando eu sei, eu sei — sussurrou Min, obstinada. — Que a Luz me ajude, eu sei.
— Ou talvez ainda vá acontecer. Ela tem um longo caminho a percorrer até chegar de volta aos carroções, e viajará por terras perigosas.
A voz da Aes Sedai era uma canção fria, sem compaixão. Perrin soltou um som involuntário pela garganta. Luz, será que foi desse jeito que eu falei? Não vou deixar uma morte ser tão pouco importante para mim.
Moiraine o encarou, como se ele tivesse falado em alto e bom som.
— Há de ser o que a Roda tecer, Perrin. Eu lhe disse há muito tempo que estávamos em guerra. Não podemos parar apenas porque alguns de nós podem morrer. Qualquer um de nós pode morrer antes de tudo terminar. As armas de Leya podem não ser iguais às nossas, mas ela sabia que talvez morresse ao tomar parte nisso.
Perrin baixou os olhos. Pode até ser assim, Aes Sedai, mas jamais vou aceitar as coisas da mesma forma que você.
Lan juntou-se a eles diante do fogo, acompanhado por Uno e Loial. As chamas formavam sombras bruxuleantes sobre o rosto do Guardião, fazendo-o parecer ainda mais entalhado em pedra que de costume, as feições duras e retas. Não era muito mais fácil observar seu manto à luz do fogo. Às vezes parecia só um manto cinza-escuro, ou preto, mas o cinza e o preto se contorciam e alteravam se vistos de perto, com sombras e espectros penetrantes deslizando por ele. Outras vezes era como se Lan tivesse aberto um buraco na noite e puxado a escuridão para cobrir os próprios ombros. Não era nada fácil de ver, e o homem que o usava não facilitava em nada.
Lan era alto e forte, com ombros largos e olhos azuis feito lagos congelados. Ele se movia com uma graça mortal, e a espada em seu quadril parecia fazer parte do próprio corpo. Não era apenas uma questão de parecer capaz de matar e cometer atos violentos: aquele homem domara a morte e a violência e as guardava no próprio bolso, pronto para libertá-las em um piscar de olhos, ou abraçá-las, a um comando de Moiraine. Comparado a Lan, até Uno parecia menos perigoso. Havia um toque grisalho nos longos cabelos do Guardião, presos por uma corda trançada de couro que lhe contornava a testa, mas mesmo os homens mais jovens evitavam enfrentá-lo. Se fossem sábios.
— A Senhora Leya trouxe as notícias de sempre da Planície de Almoth — disse Moiraine. — Todos lutando uns contra os outros. Aldeias incendiadas. Gente fugindo para todos os lados. E surgiram Caçadores na planície, à procura da Trombeta de Valere. — Perrin mudou de posição, desconfortáveclass="underline" a Trombeta estava onde nenhum Caçador da Planície de Almoth poderia encontrá-la, e onde esperava que ninguém jamais a encontrasse. Antes de prosseguir, Moiraine lançou-lhe um olhar frio. Não gostava que falassem sobre a Trombeta. Exceto quando era ideia dela, é claro. — Ela trouxe outras notícias também. Os Mantos-brancos destacaram cerca de cinco mil homens para a Planície de Almoth.
Uno grunhiu.
— Isso deve ser a bost… ah, me perdoe, Aes Sedai. Isso deve ser metade da força deles. Nunca puseram tantos em um lugar.
— Então suponho que todos os que apoiaram Rand estão mortos ou espalhados — murmurou Perrin. — Ou estarão em pouco tempo. Você estava certa, Moiraine. — Ele não gostava de pensar nos Mantos-brancos. Não gostava nem um pouco dos Filhos da Luz.
— É aí que vem a parte estranha — disse Moiraine. — Os Filhos dizem que seu propósito é trazer a paz, mas isso é normal. O que não é normal é que, embora tentem fazer tarabonianos e domaneses recuarem para suas respectivas fronteiras, não deslocaram nenhuma força contra os que estão apoiando o Dragão.
Min soltou uma exclamação de surpresa.
— Ela tem certeza disso? Não parece algo que um Manto-branco faria.
— Não devem ter sobrado tantos daqueles chamej… hã… tantos latoeiros na planície — disse Uno. Sua voz falhou pela tensão de ter que moderar o linguajar na frente da Aes Sedai. Ele franziu a sobrancelha do olho verdadeiro, igualando a expressão à do pintado. — Eles não gostam de ficar perto de nenhum tipo de problema, muito menos de lutas. Não podem estar em número suficiente para ver tudo.
— Estão em número suficiente para os meus objetivos — retrucou Moiraine, com firmeza. — A maioria se foi, mas alguns permaneceram porque eu pedi. E Leya está certíssima. Ah, sim, os Filhos capturaram alguns Devotos do Dragão, em um lugar onde apenas um pequeno grupo estava reunido. Porém, embora afirmem que derrotarão este falso Dragão, com mil homens supostamente caçando-o, eles evitam contato com qualquer grupo de mais de cinquenta Devotos. Não abertamente, entendem? Mas sempre acontece algum atraso, algo que dá a chance de os perseguidos escapulirem.
— Então Rand pode encontrá-los, como tanto quer. — Loial piscou ao olhar para a Aes Sedai, indeciso. Todo o acampamento sabia das brigas entre ela e Rand. — A Roda abriu um caminho para ele.
Uno e Lan abriram a boca ao mesmo tempo, mas o shienarano cedeu a palavra com uma pequena mesura.
— É mais provável — disse o Guardião — que seja alguma conspiração dos Mantos-brancos, mas que a Luz me queime se eu souber o que é. Mas sabe, quando um Manto-branco me dá um presente, eu logo procuro a agulha envenenada escondida. — Uno assentiu, com uma careta. — Além do mais — Lan acrescentou —, domaneses e tarabonianos ainda estão tentando matar os Devotos do Dragão com o mesmo empenho com que tentam matar uns aos outros.
— E ainda tem outra coisa — continuou Moiraine. — Três rapazes morreram em vilarejos próximos de onde passaram os carroções da Senhora Leya. — Perrin percebeu um leve tremor nas pálpebras de Lan. Para o Guardião, aquilo era equivalente a um grito de surpresa vindo de outro homem. Lan não esperava ouvir. Moiraine prosseguiu: — Um morreu envenenado, e dois, esfaqueados. Os três em circunstâncias em que ninguém poderia se aproximar sem ser visto, mas foi assim que aconteceu. — Ela olhou para as chamas. — Todos eram mais altos que a maioria e tinham olhos claros. Olhos claros são pouco comuns na Planície de Almoth, mas acho que é muita falta de sorte ser um rapaz alto de olhos claros por lá agora.
— Como? — perguntou Perrin. — Como é que eles foram mortos se ninguém podia se aproximar?
— O Tenebroso tem assassinos que nem conseguimos ver, só quando já é tarde demais — respondeu Lan, baixinho.
Uno estremeceu.
— Os Sem-alma. Nunca ouvi falar de um ao sul das Terras da Fronteira.
— Chega desse assunto — declarou Moiraine, com firmeza.
Perrin tinha muitas perguntas — O que, pela Luz, são Sem-alma? São como Trollocs ou Desvanecidos? O que são? —, mas não fez nenhuma. Quando Moiraine decidia que já fora dito o bastante a respeito de qualquer coisa, não revelava mais nada. E, uma vez que ela fechava a boca, não era possível abrir a de Lan nem com uma barra de ferro. Os shienaranos também seguiam as ordens dela. Ninguém queria irritar uma Aes Sedai.