— E eu aqui achando que você ia sair correndo até o Palácio para avisá-la. — Ele riu e ficou surpreso quando Thom começou a rir também.
— Não sou tão tolo assim, garoto. Qualquer idiota sabe que homens e mulheres às vezes pensam de modos diferentes, mas a maior diferença é a seguinte: os homens esquecem, mas nunca perdoam, enquanto as mulheres perdoam, mas nunca esquecem. Morgase pode até beijar meu rosto, me dar uma caneca de vinho e dizer que sentiu saudades de mim. Mas depois pode muito bem deixar a Guarda me arrastar até a prisão e o carrasco. Não. Morgase é uma das mulheres mais capazes que já conheci, e isso é bastante coisa. Quase sinto pena de Gaebril pelo momento em que ela descobrir o que ele está tramando. Tear, você disse? Será que tem alguma chance de esperar até amanhã para partir? Preciso mesmo de uma noite de sono.
— Quero estar o mais perto possível de Tear antes do anoitecer. — Mat piscou. — Você quer vir comigo? Pensei que queria ficar aqui.
— Não acabou de me ouvir dizer que eu decidi não ter a cabeça cortada? Tear me parece mais seguro do que Caemlyn, e de repente isso não parece mais uma má ideia. Além disso, gosto daquelas garotas. — Uma faca surgiu na mão dele e desapareceu na mesma hora. — Não quero que nada aconteça com elas. Mas, se quer chegar depressa a Tear, precisa ir para Aringill. Um barco veloz nos levará até lá dias mais rápido que cavalos, mesmo que a gente não pare até matá-los. E não estou falando isso só porque minha bunda já tomou o formato da sela.
— Para Aringill, então. Desde que seja rápido.
— Bem — interveio Gill —, se você está indo embora, garoto, talvez seja melhor eu providenciar aquela refeição. — Ele empurrou a cadeira para trás e começou a andar até a porta.
— Guarde isso para mim, Mestre Gill — pediu Mat, jogando a bolsa de couro lavado.
— O que é isso, rapaz? Moedas?
— Dinheiro para aposta. Gaebril não sabe, mas fez uma aposta comigo. — A gata saltou da mesa quando Mat pegou o copo de dados de madeira e virou o conteúdo sobre a mesa. Cinco seis. — E eu sempre ganho.
48
Seguindo o Ofício
O Flechador seguia em direção ao píer de Tear, na margem oeste do Rio Erinin, mas Egwene não prestava a menor atenção na cidade. Inclinada no gradil, de cabeça baixa, ela mantinha os olhos fixos nas águas do Erinin que passavam depressa pelo casco robusto do navio e no remo dianteiro que balançava a seu lado, entrando e saindo do seu campo de visão, abrindo sulcos brancos no rio. Aquilo a deixava enjoada, mas sabia que levantar a cabeça só agravaria o enjoo ainda mais. Olhar a costa só deixaria o balanço espiralado do Flechador ainda mais evidente.
A embarcação balançava daquele jeito desde a partida de Jurene. Ela não queria saber como fora a navegação antes, queria mesmo era que o Flechador tivesse naufragado antes de chegar a Jurene. Queria que o capitão tivesse sido obrigado a atracar em Aringill, para que elas encontrassem outro navio. Queria que jamais tivessem posto o pé em um navio. Queria muitas coisas, a maioria apenas para desviar seus pensamentos do lugar onde estava.
Depois que os remos começaram a impulsionar a embarcação, os balanços se tornaram mais suaves do que antes, com as velas, mas muitos dias haviam se passado para que a alteração fizesse alguma diferença. Seu estômago parecia se remexer como leite em uma jarra de pedra. Ela engoliu em seco e tentou esquecer a imagem.
Não haviam avançado muito nos planos, dentro do Flechador. Nynaeve mal conseguia passar dez minutos sem vomitar, e ver aquilo sempre fazia Egwene pôr para fora o tanto de comida que tivesse conseguido engolir. O calor, que aumentava à medida que o navio descia o rio, também não ajudava. Nynaeve estava lá embaixo, e Elayne sem dúvidas segurava uma bacia na frente dela.
Ah, Luz, não! Não pense nisso! Campos verdes. Prados. Luz, prados não balançam desse jeito. Beija-flores. Não, beija-flores, não! Cotovias. Cotovias cantando.
— Senhora Joslyn? Senhora Joslyn!
Ela levou um momento para reconhecer o nome falso que dissera ao Capitão Canin, assim como a voz dele. Ergueu a cabeça devagar e fixou o olhar em seu rosto comprido.
— Estamos atracando, Senhora Joslyn. A senhora não parava de dizer o quanto ansiava para chegar em terra firme. Bem, chegamos. — A voz do homem não disfarçava a avidez que sentia de se livrar das três passageiras, duas das quais haviam feito pouco mais que refluxar, como ele chamava, e gemer a noite inteira.
Marinheiros descalços e sem camisa jogavam cordas para os homens no píer de pedra que chegava até o rio. Os doqueiros pareciam usar longos coletes de couro, em vez de camisas. Os remos já haviam sido recolhidos, exceto por um par que evitava qualquer batida forte do navio no desembarcadouro. As pedras planas do píer estavam molhadas, e o ar carregava uma sensação de chuva recém-caída, o que era um tanto reconfortante. O movimento cessara havia algum tempo, percebeu, mas seu estômago ainda se lembrava. O sol ia baixo em direção ao oeste. Ela tentou não pensar em jantar.
— Muito bom, Capitão Canin — disse, com toda a dignidade que conseguiu reunir. Ele não falaria assim se eu estivesse usando meu anel, nem mesmo que eu vomitasse em cima das botas dele. Ela estremeceu ao visualizar a cena.
O anel da Grande Serpente e o aro retorcido do ter’angreal pendiam em um cordão de couro em seu pescoço. Ela podia sentir o anel de pedra frio em contato com a pele, o que era quase o bastante para contrastar com a umidade abafada do ar, mas ela também descobrira que, quanto mais usava o ter’angreal, mais sentia vontade de tocá-lo sem qualquer bolsa ou tecido entre ele e a pele.
Tel’aran’rhiod ainda revelava pouca coisa de utilidade imediata. Às vezes ela tinha vislumbres de Rand, Mat ou Perrin, mais comuns em seus próprios sonhos sem o ter’angreal, porém nada fazia sentido. Os Seanchan, em quem ela se recusava a pensar. Pesadelos com um Manto-branco usando Mestre Luhhan como isca bem no meio de uma imensa armadilha dentada. Por que tinha um falcão no ombro de Perrin, e o que haveria de importante no fato de ele escolher entre aquele machado que passara a usar e um martelo de ferreiro? O que significava ver Mat jogando dados com o Tenebroso, e por que será que ele vivia gritando “Estou indo!”, e por que ela sempre pensava, no sonho, que ele estava gritando com ela? E Rand. Ele seguia furtivamente em direção a Callandor, avançando na completa escuridão, enquanto seis homens e cinco mulheres caminhavam ao redor dele, alguns caçando-o, outros ignorando-o. Alguns tentavam guiá-lo até a espada brilhante de cristal, outros queriam impedir que ele a alcançasse, e pareciam não saber onde ele estava, ou viam apenas lampejos dele. Um dos homens tinha chamas nos olhos, e seu desespero para ver Rand morto era tão grande que ela quase podia sentir. Ela achava que o conhecia. Ba’alzamon. Mas quem eram os outros? Rand mais uma vez naquela câmara seca e empoeirada, com as minúsculas criaturas invadindo sua pele. Rand confrontando uma horda Seanchan. Rand confrontando-a, junto com a mulher ao lado dela, e uma delas era Seanchan. Era tudo confuso demais. Ela precisava parar de pensar em Rand e nos outros e se concentrar no que estava bem ali, na sua frente. O que a Ajah Negra está tramando? Por que não sonho com elas? Luz, por que não consigo aprender a fazer os sonhos revelarem o que eu quero?
— Leve os cavalos para terra firme, capitão — pediu a Canin. — Vou avisar Senhora Maryim e Senhora Caryla. — Maryim era Nynaeve, e Caryla, Elayne.
— Já mandei um homem avisá-las, Senhora Joslyn. E seus animais estarão no píer assim que meus homens equiparem as hastes de apoio.