— Dados viciados — disse Thom, depois deu uma tossida. — Quando ele quer ter a certeza da vitória, usa dados que sempre mostram a mesma face. O homem é esperto o bastante para não tirar o maior lance, pois o povo começa a desconfiar quando alguém só tira o rei. — Ele ergueu uma sobrancelha para Mat. — Ele tira um resultado quase impossível de se vencer, mas isso não pode mudar o fato de que sempre mostram a mesma face.
— Já ouvi falar disso — respondeu o estalajadeiro, devagar. — Os illianenses fazem isso, pelo que ouvi. — O homem sacudiu a cabeça. — Mas eles dois estão usando o mesmo copo e os mesmos dados. Não pode ser.
— Traga aqui dois copos de dados — pediu Thom — e dois conjuntos de dados. Coroas ou pontos, não faz diferença, contanto que sejam iguais.
O estalajadeiro franziu o rosto, mas se afastou — cautelosamente levando consigo a caneca de peltre — e retornou com dois copos de couro. Thom despejou os cinco cubos de osso de um dos copos na mesa, diante de Mat. Fossem de pontos ou símbolos, todos os conjuntos de dados que Mat já vira eram feitos de osso ou madeira. Aqueles tinham pontos. Ele ergueu os dados, encarando o menestrel com uma carranca.
— Eu deveria estar enxergando alguma coisa?
Thom despejou os dados do outro copo na própria mão. Depois, em um movimento ligeiro e difícil de acompanhar, jogou-os de volta para dentro e apoiou o copo de cabeça para baixo na mesa, antes que os dados caíssem. Manteve a mão em cima do copo.
— Faça uma marca em cada um deles, garoto. Algo sutil, mas que você seja capaz de reconhecer.
Mat percebeu que trocava olhares intrigados com o estalajadeiro. Então os dois olharam o copo virado sob a mão do amigo. Ele sabia que Thom aprontaria algum truque, menestréis estavam sempre fazendo coisas impossíveis, como engolir fogo e puxar panos de seda do ar, mas não via como aquilo seria possível, se estava observando tão de perto. Desembainhou a faca de cintura e fez um pequeno arranhão em cada um dos dados, bem ao lado do círculo de seis pontos.
— Está bem — disse, devolvendo os dados à mesa. — Mostre o seu truque.
Thom estendeu a mão, apanhou os dados e os colocou na mesa outra vez, a um pé de distância.
— Procure as marcas, garoto.
Mat franziu a testa. A mão de Thom ainda estava no copo de couro de cabeça para baixo, o menestrel não o movimentara, nem levara os dados de Mat para perto dele. O rapaz pegou os dados… e piscou. Não havia qualquer marca neles. O estalajadeiro ofegou.
Thom virou a palma da mão livre, revelando cinco dados.
— Suas marcas estão nestes aqui. É isso que Comar está fazendo. É um truque infantil, muito simples, mas não imaginei que ele tivesse mãos tão leves.
— Acho que não quero mais jogar dados com você — comentou Mat, devagar. O estalajadeiro olhava os dados, mas não parecia ver uma solução. — Chame a Guarda, ou seja lá o nome que vocês dão aqui — sugeriu Mat. — Mande prendê-lo. — Em uma cela de prisão, ele não vai conseguir matar ninguém. Mas e se elas já estiverem mortas? Tentou não dar atenção àquilo, mas o pensamento persistia. Então eu mato ele e Gaebril também, custe o que custar! Mas elas não estão, que me queime! Não podem estar!
O estalajadeiro sacudia a cabeça.
— Eu? Eu, denunciar um mercador aos Defensores? Eles nem olhariam os dados dele. Bastaria uma palavra dele, e eu seria acorrentado para trabalhar com as dragas dos canais nas Garras do Dragão. Ele poderia me retalhar aqui mesmo, e os Defensores diriam que fiz por merecer. Pode ser que ele vá embora em breve.
Mat fez uma careta irônica.
— Se eu expuser o homem, será que basta? O senhor chama a Guarda, ou os Defensores, ou quem quer que seja?
— Você não entende. Você é estrangeiro. Mesmo que seja de fora, ele é um homem rico e importante.
— Espere aí — disse Mat, olhando para Thom. — Não vou deixar que ele alcance Egwene e as outras, custe o que custar. — Ele bocejou enquanto puxava a cadeira para trás.
— Espere, garoto — chamou Thom, com a voz baixa e premente. O menestrel se levantou da cadeira. — Que o queime, você não sabe em que está se metendo!
Mat acenou para que Thom ficasse e caminhou até Comar. Ninguém mais aceitara o desafio do homem barbado, e ele olhou com interesse quando o rapaz de Dois Rios apoiou o bastão na mesa e se sentou.
Comar analisou o casaco de Mat e abriu um sorriso asqueroso.
— Que apostar cobres, fazendeiro? Não perco meu tempo com… — Ele parou de falar quando Mat pôs uma coroa de ouro andoriana na mesa e bocejou, sem se esforçar para cobrir a boca. — Você fala pouco, fazendeiro, e poderia melhorar um pouco os modos, mas o ouro fala por si mesmo e não precisa demonstrar boas maneiras. — Ele sacudiu o copo de couro em sua mão e despejou os dados. Soltou risadinhas antes mesmo de os cubos de osso pararem, mostrando três coroas e duas rosas. — Não vai bater isso, fazendeiro. Será que tem mais algum ouro escondido nesses trapos que esteja disposto a perder? O que foi que você fez? Roubou seu mestre?
Ele estendeu o braço para recolher os dados, mas Mat os apanhou antes. Comar cravou os olhos nele, mas deixou-o ficar com o copo. Se os lances fossem iguais, jogariam outras rodadas até que um dos dois ganhasse. Mat sorria enquanto sacudia o copo. Não pretendia dar a Comar a chance de trocá-los. Se ambos jogassem os mesmos lances três ou quatro vezes seguidas — exatamente os mesmos, todas as vezes —, até mesmo os Defensores dariam ouvidos às reclamações. O salão inteiro veria, todos teriam que testemunhar a seu favor.
Ele jogou os dados na mesa. Quicaram de modo estranho. Ele sentiu algo… se remexer. Foi como se sua sorte estivesse enlouquecendo. O salão parecia se contorcer ao redor dele, repuxando os dados com fios. Por algum motivo, quis olhar para a porta, mas manteve os olhos nos dados. Eles pararam. Cinco coroas. Os olhos de Comar pareciam prestes a saltar das órbitas.
— Você perdeu — murmurou Mat. Se a sorte chegara a tal ponto, talvez fosse hora de forçar um pouco mais. Uma vozinha em sua cabeça o mandava pensar, mas ele estava cansado demais para escutar. — Acho que sua sorte está esgotada, Comar. Se você fez algum mal àquelas garotas, está tudo acabado.
— Mas eu nem encontrei… — começou a responder Comar, ainda encarando os dados, depois levantou a cabeça depressa. Estava pálido. — Como é que você sabe o meu nome?
Ele ainda não as encontrara. Sorte, doce sorte, fique comigo.
— Volte para Caemlyn, Comar. Diga a Gaebril que não conseguiu encontrar as garotas. Diga que estão mortas. Diga qualquer coisa, mas saia de Tear hoje à noite. Se eu o vir outra vez, mato você.
— Quem é você? — perguntou o homem corpulento, inseguro. — Quem… — No instante seguinte ele estava de pé, a espada desembainhada.
Mat empurrou a mesa para cima do homem, virando-a, e agarrou o bastão. Esquecera como Comar era grande. O homem barbado empurrou a mesa de volta para cima dele. Mat caiu com a cadeira, agarrado ao bastão, enquanto o sujeito atirava a mesa longe e avançava para golpeá-lo. Mat empurrou os pés contra o tronco do sujeito, para impedir que ele avançasse, e girou o bastão meio sem jeito, apenas para desviar a espada. Mas o golpe fez o bastão voar de suas mãos, e o rapaz se viu segurando o punho de Comar, a lâmina da espada a um palmo de seu rosto. Com um grunhido, ele rolou para trás e fazendo o máximo de força que pôde com as pernas, para arremessá-lo. O homem arregalou os olhos enquanto era arremessado por cima de Mat e desabava em uma mesa, de cara para cima. O rapaz de Dois Rios arrastou-se até o bastão, mas, quando o alcançou, Comar já não se movia.