— Não quero atrapalhar os senhores no trabalho, então, se puderem me deixar seguir meu caminho, deixo os senhores seguirem o seu e não abro a boca. — Os homens de véus não se moveram, e nem as lanças. — Não quero gritaria, assim como vocês. — Os sujeitos permaneciam parados como estátuas, encarando-o. Que me queime, eu não tenho tempo para isso. É hora de jogar os dados. Por um instante aterrador, pensou que as palavras em sua cabeça haviam soado estranhas. Apertou o bastão, encostando-o de um lado do corpo, e quase soltou um grito quando alguém pisou forte em seu pulso.
Ele rolou os olhos para ver quem era. Que me queime por ser tão idiota, eu me esqueci do sujeito que rolei por cima. Porém, notou outra silhueta se movendo por trás daquela que prendia seu punho e concluiu que, no fim das contas, fora melhor não ter conseguido usar o bastão.
Uma bota macia e amarrada até o joelho repousava em seu braço. Aquilo incitava sua memória. Algo relacionado a um homem encontrado nas montanhas. Ele olhou o restante da silhueta coberta pelo manto da noite, tentando distinguir o corte e as cores das roupas que pareciam envoltas em sombras, com cores que se mesclavam demais à escuridão para que as enxergasse com clareza. Tentou distinguir o que havia por trás da faca de lâmina longa no punho do sujeito, o que havia até o véu negro que cobria seu rosto. Um rosto de véu negro. Véu negro.
Aiel! Que me queime, o que esses malditos Aiel estão fazendo aqui? Ele sentiu o estômago afundar ao se lembrar de ouvir que os Aiel usavam os véus quando pretendiam matar.
— Sim — concordou uma voz masculina —, nós somos Aiel.
Mat levou um susto: não percebera que havia falado em voz alta.
— Você dança bem para alguém pego de surpresa — comentou uma jovem voz feminina. Ele achou que fosse ela quem estava pisando em seu pulso. — Talvez outro dia eu tenha tempo para dançar com você de um jeito mais apropriado.
Ele começou a abrir um sorriso — Se ela quer dançar, acho que não devem estar prestes a me matar! —, mas então franziu a testa. Tinha a lembrança de que os Aiel às vezes diziam as coisas de uma forma diferente.
As lanças foram recolhidas, e mãos o ergueram. Ele as dispensou e se sacudiu como se estivesse em um salão de estalagem, não em cima de um telhado coberto pela noite em companhia de quatro Aiel. Sempre compensava deixar o adversário saber que enfrentava alguém de nervos inabaláveis. Os Aiel levavam aljavas nas cinturas, além de facas e outras daquelas lanças curtas nas costas, e mais os arcos dentro de estojos. As pontas das lanças longas se projetavam por cima dos ombros. Mat percebeu que cantarolava “Estou no Fundo do Poço” e parou.
— O que está fazendo aqui? — perguntou a voz masculina. Como usavam véus, Mat não tinha muita certeza de qual deles havia falado. A voz soava mais velha, confiante, acostumada a comandar. Achou que podia distinguir a mulher, pelo menos: era a única mais baixa que ele, mas não muito. Todos os outros eram uma cabeça ou mais maiores que ele. Malditos Aiel, pensou. — Vigiamos você há algum tempo — prosseguiu o homem mais velho —, observando-o examinar a Pedra. Já a analisou de todos os lados. Por quê?
— Eu poderia perguntar o mesmo de todos vocês — comentou outra voz. Mat foi o único que se assustou quando um homem de calças largas emergiu das sombras. O sujeito parecia estar sem sapatos, para pisar melhor nas telhas. — Esperava encontrar ladrões, não Aiel — prosseguiu o homem —, mas não pensem que me assustam por estarem em maioria. — Um cajado fino, mais baixo que a cabeça do homem, tornou-se um borrão e produziu um zumbido quando foi rodopiado. — Meu nome é Juilin Sandar, sou um caçador de ladrões e gostaria de saber por que todos vocês estão em cima de um telhado examinando a Pedra.
Mat sacudiu a cabeça. Quantas pessoas resolveram subir nesses malditos telhados hoje? Só faltava Thom aparecer e começar a tocar a harpa, ou surgir alguém à procura de uma estalagem. Um desgraçado de um apanhador de ladrões! Ele se perguntou por que os Aiel continuavam parados.
— Você espreita bem, para um homem da cidade — comentou a voz do homem mais velho. — Mas por que está nos seguindo? Não roubamos nada. E por que é que ficou tanto tempo encarando a Pedra, hoje à noite?
Mesmo sob o luar, a surpresa de Sandar era evidente. Ele levou um susto, abriu a boca… e a fechou de volta quando mais quatro Aiel irromperam da escuridão atrás dele. Com um suspiro, apoiou-se no bastão delgado.
— Parece que eu é que fui pego — resmungou. — Parece que eu é que vou ter que responder às perguntas de vocês. — Ele perscrutou a Pedra, depois balançou a cabeça. — Eu… fiz uma coisa hoje que… me preocupa. — Ele quase parecia falar sozinho, tentando desvendar o que acontecera. — Uma parte de mim diz que foi a coisa certa, que devo obediência. Sem dúvida parecia certo, quando fiz. Mas uma vozinha me diz que eu… cometi uma traição. Tenho certeza de que essa voz está errada, e ela é muito fraquinha, mas não para. — Ele ficou em silêncio e balançou a cabeça outra vez.
Um dos Aiel assentiu e falou com a voz do homem mais velho:
— Eu sou Rhuarc, do ramo dos Nove Vales dos Aiel Taardad, e já fui Aethan Dor, um Escudo Vermelho. Algumas vezes os Escudos Vermelhos fazem o que os seus caçadores de ladrões fazem. Digo isso para que compreenda que sei o que você faz e o tipo de homem que deve ser. Não pretendo machucá-lo, Juilin Sandar dos caçadores de ladrões, nem as pessoas de sua cidade, mas não lhe será permitido dar o grito de alerta. Se fizer silêncio, viverá. Se não, não.
— Não pretende fazer mal à cidade — repetiu Sandar, sem pressa. — Então por que está aqui?
— A Pedra. — O tom de Rhuarc deixava claro que não pretendia dizer nada além daquilo.
Depois de um instante, Sandar assentiu e murmurou:
— Eu quase gostaria que você tivesse o poder de causar algum mal à Pedra, Rhuarc. Vou segurar minha língua.
Rhuarc, o rosto ainda coberto pelo véu, se virou para Mat.
— E você, jovem sem nome? Vai me dizer por que vigia a Pedra tão de perto?
— Eu só queria dar uma caminhada ao luar — respondeu Mat, muito calmo. A mulher pôs a ponta da lança outra vez em sua garganta, e ele tentou não engolir. Bem, talvez eu possa contar alguma coisa a eles. Ele não podia deixar transparecer que estava abalado. Se deixasse o oponente perceber uma coisa dessas, perderia toda a vantagem. Com muito cuidado, usando dois dedos, afastou a lâmina do próprio pescoço. Imaginou ouvir a mulher rir baixinho. — Algumas pessoas que conheço estão dentro da Torre — explicou, tentando soar despreocupado. — Prisioneiras. Quero tirá-las de lá.
— Sozinho, sem nome? — perguntou Rhuarc.
— Bem, parece que não tem mais ninguém para vir comigo — retrucou Mat, ríspido. — A não ser que vocês queiram ajudar? Parecem que também estão interessados na Pedra. Se entrarem, talvez possamos ir juntos. O lance é arriscado de qualquer jeito, mas minha sorte é boa. — Até agora, pelo menos. Esbarrei com Aiel de véus negros e não fui degolado por eles, não dá para ter mais sorte que isso. Que me queime, não seria nada mau levar alguns Aiel lá para dentro comigo. — Apostar na minha sorte não costuma ser tão ruim.
— Não viemos atrás de prisioneiros, jogador — respondeu Rhuarc.
— Está na hora, Rhuarc. Mat não soube dizer de qual dos Aiel vinha a voz, mas o homem assentiu.
— Sim, Gaul. — Ele olhou de Mat para Sandar, e de volta para Mat. — Não cantem o grito de alerta. — O homem se virou e, dois passos adiante, já se misturara à sombra.
Mat levou um susto. Os outros Aiel também haviam desaparecido, deixando-o sozinho com o apanhador de ladrões. A menos que tenham deixado alguém nos vigiando. Que me queime, como é que eu vou saber?