— Espero que não queira me impedir também — disse a Sandar, enquanto jogava outra vez a trouxa de fogos de artifício nas costas e apanhava o bastão. — Quero entrar lá, ao seu lado ou por cima de você, de um jeito ou de outro. — Ele foi até a chaminé e pegou a latinha. A alça de arame estava mais do que morna.
— Essas pessoas que você mencionou — começou Sandar. — Por acaso são três mulheres?
Mat franziu o rosto, lamentando que não houvesse luz suficiente para revelar o rosto do homem. A voz do sujeito era esquisita.
— O que é que você sabe delas?
— Sei que elas estão dentro da Pedra. E conheço um pequeno portão perto do rio por onde um caçador de ladrões tem permissão para entrar com um prisioneiro, para levá-lo até as celas. As celas onde elas devem estar. Se confiar em mim, jogador, posso nos levar até lá. O que acontecer depois disso fica por conta do acaso. Talvez a sua sorte nos traga de volta com vida.
— Eu sempre tive sorte — começou Mat, devagar. Será que me acho sortudo o bastante para confiar nele? Não gostava muito da ideia de se passar por um prisioneiro: parecia fácil demais a encenação se tornar realidade. Porém, não parecia ser mais arriscado do que subir trezentos pés ou mais naquela escuridão.
Ele olhou na direção da muralha da cidade. Ela estava encoberta em sombras, silhuetas indistintas que deslizavam por ela. Aiel, não tinha dúvidas. Devia haver mais de cem. Haviam desaparecido, mas dava para ver as sombras se deslocando pela parede vertical que formava o lado íngreme da Pedra de Tear. Não daria mais para subir por ali. Aquele sujeito que subiu mais cedo podia até ter conseguido entrar sem disparar nenhum alarme — o tal grito de alerta de Rhuarc —, mas cem ou mais Aiel avançando juntos deviam soar como sinos. No entanto, talvez desviassem a atenção. Se causassem uma comoção lá para cima, dentro da Pedra, talvez o vigia das celas não prestasse tanta atenção a um apanhador de ladrões arrastando um ladrão.
Eu poderia muito bem apimentar um pouco a confusão. Dei muito duro por isso.
— Muito bem, apanhador de ladrões. Só não vá concluir no último minuto que sou um prisioneiro de verdade. Podemos começar a caminhada até o seu portão assim que eu remexer um pouquinho esse formigueiro. — Pensou ter visto Sandar franzir a testa, mas não diria ao homem mais do que o necessário.
Sandar o seguiu pelos telhados, subindo para os andares de cima com a mesma facilidade que ele. O último telhado era só um pouco mais baixo que o topo da muralha e ia direto até ela, bastava se erguer um pouco, em vez de escalar.
— O que está fazendo? — sussurrou Sandar.
— Espere por mim aqui.
Com a latinha balançando em uma das mãos, suspensa pela alça de arame, e segurando o bastão à frente na horizontal, Mat respirou fundo e começou a avançar em direção à Pedra. Tentou não pensar na altura a que estava da calçada lá embaixo. Luz, esse troço maldito tem três pés de largura! Daria pra caminhar por ele com uma porcaria de uma venda, e dormindo! Três pés de largura, no escuro, e mais de cinquenta pés até a calçada. Ele também tentou não pensar que Sandar poderia não estar lá quando ele voltasse. Estava quase comprometido com a ideia idiota de fingir ser um ladrão capturado pelo sujeito, mas parecia muito provável que retornasse ao telhado só para descobrir que Sandar sumira, decerto para voltar com reforços e fazer dele um prisioneiro de verdade. Não pense nisso. Mantenha o foco na tarefa que tem nas mãos. Pelo menos finalmente vou ver como é.
Como suspeitara, havia uma seteira na muralha da Pedra, bem no topo, um entalhe profundo que formava uma abertura comprida e estreita, suficiente para passar uma flecha. Se a Pedra fosse atacada, os soldados lá dentro dariam algum jeito de impedir qualquer tentativa de seguir por aquele caminho. A fenda estava escura. Não parecia haver alguém de vigia. O que era algo sobre o qual ele também tentara evitar pensar.
Sem parar por muito tempo, Mat pousou a latinha a seus pés, equilibrou o bastão na parede bem ao lado da Pedra e soltou a trouxa das costas. Mais do que depressa, enfiou a trouxa para dentro da rachadura, empurrando-a o mais fundo que pôde. Queria que o máximo possível de barulho fosse ouvido do lado de dentro. Puxou um canto do tecido encerado, revelando os estopins amarrados. Depois de pensar um pouco, em seu quarto, decidiu cortar os pavios longos, para igualá-los ao tamanho do menor. Então usara as sobras de corda para ajudar a amarrar todos os pavios juntos. Achava que todos disparariam ao mesmo tempo, produzindo um estrondo e um clarão que seria suficiente para atrair a atenção de qualquer um que não fosse completamente surdo.
A tampa da latinha estava tão quente que ele teve que soprar os próprios dedos duas vezes antes de arrancá-la, e desejou saber o tal truque de Aludra para acender aquela lanterna com tanta facilidade. Expôs o pedaço escuro de carvão que havia lá dentro, acomodado em uma cama de areia. A alça foi removida e virou uma pinça, e um soprinho trouxe de volta o brilho vermelho ao carvão. Ele encostou a brasa nos pavios amarrados, largou a pinça e o carvão ao lado do muro enquanto as cordinhas assoviavam em chamas, agarrou o bastão e saiu correndo de volta para a muralha.
Isso é loucura, pensou enquanto corria. Não me importa qual vai ser o tamanho da explosão. Eu poderia quebrar o pescoço fazendo iss…!
O estrondo atrás de si foi mais alto do que qualquer coisa que já ouvira em toda a vida. Um soco monstruoso o golpeou pelas costas, expulsando todo o ar de seus pulmões antes mesmo de ele conseguir aterrissar no topo do muro, estatelado de barriga para baixo, mal conseguindo segurar o bastão que balançava sobre a beirada. Por um instante, permaneceu ali, tentando recobrar o fôlego, tentando não pensar em como sem dúvida finalmente gastara toda a sorte para não cair do muro. Seus ouvidos reverberavam como os sinos de Tar Valon.
Ele se levantou com cuidado e olhou para trás, na direção da Pedra. Uma nuvem de fumaça se erguia em torno da seteira. Por trás da fumaça, o contorno sombreado da seteira parecia diferente. Maior. Ele não entendia como nem por quê, mas de fato parecia maior.
Parou para pensar apenas por um instante. Em um extremo da muralha devia estar Sandar, esperando para entrar na Pedra levando-o disfarçado de prisioneiro, ou então retornando com soldados. No outro extremo, deveria haver alguma forma de entrar sem qualquer chance de Sandar traí-lo. Mat avançou pelo caminho que acabara de percorrer, sem se preocupar com a escuridão ou o risco de queda para qualquer um dos lados.
A seteira estava maior, a maior parte da pedra mais fina no meio simplesmente desaparecera, deixando um buraco grosseiro, como se alguém tivesse passado horas martelando a parede.
Ele forçou passagem pela nova abertura, tossindo com a fumaça penetrante, depois pulou para o chão do lado de dentro e caminhou uns doze passos até dar de cara com Defensores da Pedra, pelo menos dez deles, todos gritando e confusos. A maioria estava apenas de camisa, e nenhum usava elmo ou placa peitoral. Alguns seguravam lanternas. Outros erguiam espadas desembainhadas.
Idiota!, gritou em pensamento. Foi para isso que acendeu aquelas porcarias, para começo de conversa! Idiota cego pela Luz!
Não tinha tempo de retornar até a muralha. Girando o bastão, partiu para cima dos soldados antes que os homens pudessem fazer mais que notar sua presença. Lançou-se na direção deles, golpeando cabeças, espadas, joelhos e o que mais pudesse, sabendo que eram muitos para enfrentar sozinho, sabendo que aquela jogada de dados imbecil custara qualquer chance que Egwene e as outras pudessem ter.
De repente Sandar surgiu ao lado dele, iluminado pela luz das lanternas largadas pelos homens agarrados às espadas, o cajado fino rodopiando ainda mais rápido que o bastão de Mat. Pegos de surpresa por dois homens com bastões, os soldados desabaram como pinos em um jogo de boliche.