— Espero que estejam — respondeu Egwene, em um tom sombrio. — Espero que estejam.
Ela agarrou o ter’angreal e fechou os olhos. Sentiu Elayne alisando seus cabelos e ouviu-a murmurar baixinho. Nynaeve começou a cantarolar aquela canção de ninar de sua infância, e pela primeira vez não sentiu raiva alguma. Os sons e toques suaves a acalmaram, deixaram-na se render ao cansaço, permitindo que o sono chegasse.
Ela usava seda azul dessa vez, mas não notou qualquer coisa além disso. Uma brisa suave acariciava seu rosto sem hematomas e avivava o voo das borboletas sobre as flores silvestres. A sede desaparecera, e também a dor. Ela tentou abraçar saidar e foi preenchida pelo Poder Único. Mesmo o triunfo que sentiu ao ter sucesso era pequeno se comparado à onda de Poder que a invadia.
Com relutância, se forçou a encerrar o contato com a Fonte, fechou os olhos e preencheu o vazio com uma imagem perfeita do Coração da Pedra. Aquele era o único lugar da Pedra que era capaz de visualizar, além da cela, e como distinguiria entre dois cubículos sem qualquer traço característico? Quando abriu os olhos, estava lá. Porém, não estava sozinha.
A silhueta de Joiya Byir estava parada diante de Callandor, tão insubstancial que a luz da espada brilhava através dela. A espada de cristal parara de apenas reluzir com o reflexo da luz e no momento pulsava com um brilho próprio, como se alguma luz dentro dela estivesse sendo revelada, coberta, e depois encoberta outra vez. A irmã Negra teve um sobressalto e virou-se para Egwene.
— Como? Você está blindada! Seu Sonho chegou ao fim!
Antes que as primeiras palavras saíssem da boca da mulher, Egwene alcançou saidar outra vez, urdiu a intrincada trama de Espírito que lembrava ter sido usada contra ela e cortou o contato de Joiya Byir com a Fonte. Os olhos da Amiga das Trevas se arregalaram, aqueles olhos cruéis e tão incongruentes com o rosto belo e gentil, mas Egwene já começara a tecer Ar. A silhueta da outra mulher podia parecer uma névoa, mas os elos a contiveram. Egwene parecia não precisar fazer esforço para sustentar a urdidura dos dois fluxos. Quando se aproximou, pôde ver o suor na testa de Joiya Byir.
— Você tem um ter’angreal! — O medo no rosto da mulher era evidente, mas sua voz lutava para escondê-lo. — Só pode ser isso. Um ter’angreal que escapou e que não requer canalização. Acha que vai adiantar de alguma coisa, garota? Nada do que fizer aqui poderá afetar o que acontece no mundo real. Tel’aran’rhiod é um sonho! Quando eu acordar, vou pessoalmente arrancar esse ter’angreal de você. Cuidado com o que faz, para eu não entrar furiosa na sua cela.
Egwene sorriu para ela.
— Tem certeza de que vai acordar, Amiga das Trevas? Se o seu ter’angreal requer canalização, por que você não acordou assim que eu a blindei? Talvez não consiga acordar enquanto estiver blindada aqui. — Seu sorriso morreu, o simples esforço de sorrir para aquela Aes Sedai era maior do que ela podia suportar. — Uma mulher me mostrou uma cicatriz que ganhou em Tel’aran’rhiod, Amiga das Trevas. O que acontece aqui continua real quando você acorda.
O suor escorria pela face lisa e de idade indefinida da irmã Negra. Egwene se perguntou se a mulher acreditava estar prestes a morrer. Quase desejou ser cruel o bastante para fazer aquilo. A maioria dos golpes invisíveis que sofrera vieram daquela mulher, que a esmurrara apenas porque tentara rastejar para longe, apenas porque se recusara a desistir.
— Uma mulher capaz de dar surras tão violentas — comentou Egwene — não deve fazer objeção a uma mais leve. — Mais do que depressa, urdiu outro fluxo de Ar. Joiya Byir arregalou os olhos escuros, incrédula, quando o primeiro golpe a atingiu nos quadris. Egwene percebeu como ajustar a tessitura para que não precisasse sustentá-la. — Você vai se lembrar disso, quando acordar, e vai sentir. Quando eu permitir que você acorde. E tem mais uma coisa. Se tentar me bater outra vez, trarei você de volta para cá e a deixarei aqui para o resto da vida! — Os olhos da irmã Negra a encaravam cheios de ódio, mas também deixavam escapar um traço de lágrimas.
Egwene sentiu vergonha por um momento. Não pelo que estava fazendo a Joiya, já que a mulher merecia cada golpe. Se não pelo que fizera a ela, então pelas mortes dentro da Torre. Não era exatamente aquilo, e sim porque estava gastando tempo com a própria vingança enquanto Nynaeve e Elayne permaneciam sentadas dentro de uma cela, torcendo contra todas as chances para que ela fosse capaz de resgatá-las.
Ela prendeu os fluxos de suas tessituras antes que percebesse o que fizera, depois parou para analisar o que acabara de fabricar. Três tramas separadas, e não só não encontrara problemas para sustentá-las juntas, como também conseguira fazer com que as três se sustentassem sozinhas. Julgava-se capaz de lembrar como fizera. E poderia ser útil.
Depois de um instante, desfiou uma das tramas, e a Amiga das Trevas soluçou, tanto de alívio quanto de dor.
— Eu não sou como você — declarou Egwene. — Essa é a segunda vez que fiz uma coisa dessas, e não gosto nem um pouco. Vou ter que aprender a cortar gargantas, em vez disso. — Pela expressão no rosto da irmã Negra, a mulher devia ter pensado que Egwene pretendia começar por ela.
Com um som de repulsa, a jovem de Dois Rios deixou a mulher ali, aprisionada e blindada, e correu pela floresta de colunas de pedra vermelha polida. Tinha que haver um caminho até as celas.
O corredor de pedras caiu em silêncio quando o grito derradeiro foi interrompido pelo cravar da mandíbula do Jovem Touro na garganta do de duas pernas, esmagando-a. O sangue em sua língua tinha um gosto amargo.
Ele sabia que ali era a Pedra de Tear, embora não soubesse dizer como sabia. Os de duas pernas que jaziam ao redor dele, um deles dando os últimos chutes enquanto os dentes de Saltador se enterravam em sua garganta, haviam exalado o odor rançoso de medo, durante a luta. Um odor de confusão. Ele achava que os dois não sabiam onde estavam, e sem dúvida não pertenciam ao sonho do lobo, mas ainda assim estavam ali para impedi-lo de chegar àquela porta comprida mais adiante, a porta com o cadeado de ferro. Estavam ali para vigiá-la, pelo menos. Haviam ficado surpresos em ver lobos. Pensou que tivessem ficado surpresos em notar que estavam ali.
Limpou a boca, depois encarou a própria mão com uma incompreensão momentânea. Era homem outra vez. Era Perrin. De volta ao próprio corpo, com o colete de ferreiro e o pesado martelo ao seu lado.
Temos que correr, Jovem Touro. Algo maligno se aproxima.
Perrin puxou o martelo do cinturão enquanto avançava até a porta.
— Faile deve estar aqui. — Um golpe certeiro estilhaçou o cadeado. Ele deu um chute para abrir a porta.
O cômodo estava vazio, exceto por um bloco de pedra comprido no centro do chão. Faile estava deitada sobre o bloco, parecendo dormir, os cabelos negros espalhados como um leque, o corpo tão acorrentado que ele levou um tempo para perceber que ela estava nua. Cada corrente estava presa à pedra por uma tranca grossa.
Ele mal percebeu que cruzara o aposento até tocar a face da moça, deslizando um dedo pela maçã do rosto.
Ela abriu os olhos e sorriu para ele.
— Eu sonhei que você vinha, ferreiro.
— Já vou libertar você, Faile. — Perrin ergueu o martelo e estraçalhou uma das trancas, como se fosse de madeira.
— Eu tinha certeza. Perrin.
Enquanto seu nome saía da boca de Faile, ela também saía de vista. Com um estrépito, as correntes desabaram na pedra onde ela estivera.
— Não! — gritou. — Eu a encontrei!
O sonho não é como o mundo de carne, Jovem Touro. Aqui, a mesma caçada pode ter muitos finais.