— Você viu “o corpo” — retrucou Moiraine, a boca contorcida. — O corpo de um homem. Não o Tenebroso, Mat.
Ele encarou Egwene e as outras duas mulheres. As três pareciam tão confusas quanto ele. Rhuarc aparentava refletir sobre uma batalha que pensava ter ganhado e acabara de descobrir que sequer fora lutada.
— Então quem era? — perguntou Mat. — Moiraine, minha memória tem buracos onde cabem uma carroça e um pelotão, mas me lembro de Ba’alzamon estar nos meus sonhos. Eu me lembro! Que me queime, não vejo como poderia esquecer! E reconheci o que restou daquele rosto.
— Você reconheceu Ba’alzamon — respondeu Moiraine. — Ou melhor, o homem que se denominava Ba’alzamon. O Tenebroso ainda vive, aprisionado em Shayol Ghul, e a Sombra ainda jaz no Padrão.
— Que a Luz nos ilumine e proteja — murmurou Elayne, com a voz fraca. — Eu pensei… pensei que os Abandonados eram o pior que teríamos que enfrentar, agora.
— Tem certeza, Moiraine? — perguntou Nynaeve. — Rand tinha certeza… tem certeza de que matou o Tenebroso. Parece que você está dizendo que Ba’alzamon nem mesmo era o Tenebroso. Não entendo! Como pode estar tão certa disso? E, se ele não era o Tenebroso, então quem era?
— Tenho certeza pela mais simples das razões, Nynaeve. Por mais rápido que tenha apodrecido, aquele era o corpo de um homem. Você acredita que, se o Tenebroso fosse morto, deixaria para trás o corpo de um ser humano? O homem que Rand matou era um homem. Talvez fosse o primeiro dos Abandonados a ser liberto ou talvez nunca tivesse sido preso. Pode ser que a gente nunca descubra a verdade.
— Eu… acho que sei quem ele era. — Egwene fez uma pausa, com a testa um pouco franzida. — Pelo menos, acho que tenho uma suspeita. Verin me mostrou uma página de um antigo livro que mencionava Ba’alzamon e Ishamael. Era quase em Alto Canto e praticamente incompreensível, mas me lembro de algo a respeito de “nome oculto por nome”. Talvez Ba’alzamon fosse Ishamael.
— Talvez — concordou Moiraine. — Talvez fosse Ishamael. Mas, se era, pelo menos nove dos treze ainda vivem. Lanfear, Sammael, Rahvin, e… aahh! Nem mesmo saber que pelo menos alguns desses nove estão livres é o mais importante. — Ela pousou uma das mãos no disco preto e branco na mesa. — Três dos selos estão rompidos. Apenas quatro ainda estão inteiros. E só esses quatro selos separam o Tenebroso do mundo, e pode ser que mesmo com esses ainda inteiros ele consiga tocar o mundo, de alguma forma. Seja lá que batalha a gente tenha vencido aqui, batalha ou escaramuça, está longe de ser o fim.
Mat olhou as três com firmeza, Egwene, Nynaeve e Elayne. De forma lenta e relutante, mas também determinada, ele balançou a cabeça. Malditas mulheres! Estão todas prontas pra seguir em frente com isso, seguir com a caçada à Ajah Negra, tentar enfrentar os Abandonados e o maldito Tenebroso. Bom, elas que não pensem que vou resgatá-las do caldeirão de sopa mais uma vez. Elas que não pensem, só isso!
Uma das compridas portas duplas se abriu enquanto ele tentava pensar em algo a dizer, e uma jovem alta e de porte majestoso adentrou o recinto. Ela usava uma grinalda acima da testa, onde estava gravado um gavião em pleno voo. Os cabelos negros roçavam os ombros pálidos, que eram deixados à mostra pelo vestido da mais fina seda vermelha, assim como uma boa parte do que Mat notou ser um busto admirável. Por um instante, ela analisou Rhuarc com os olhos grandes e escuros, depois voltou-os, frios e soberbos, para as mulheres à mesa. Pareceu ignorar Mat solenemente.
— Não estou acostumada a dar recados — anunciou, exibindo, com um floreio, um pergaminho dobrado em uma das mãos delicadas.
— E quem é você, criança? — perguntou Moiraine.
A jovem aprumou-se ainda mais, o que Mat julgava impossível.
— Sou Berelain, Primeira de Mayene. — Com um gesto altivo, ela jogou o pergaminho na mesa à frente de Moiraine, depois virou-se de volta para a porta.
— Um momento, criança — pediu Moiraine, desdobrando-o. — Quem foi que lhe entregou isso? E por que foi você quem trouxe, se não está acostumada a carregar mensagens?
— Eu… eu não sei. — Berelain continuava encarando a porta. Soava intrigada. — Ela era… impressionante. — A jovem se recompôs e pareceu recuperar o próprio juízo. Por um instante, estudou Rhuarc com um leve sorriso. — O senhor é o líder desses homens de Aiel? A luta de vocês perturbou meu sono. Talvez eu os convide para jantar comigo. Um dia, em breve. — Ela olhou Moiraine por cima do ombro. — Ouvi dizer que o Dragão Renascido tomou a Pedra. Informe ao Lorde Dragão que a Primeira de Mayene jantará com ele hoje à noite. — Ela marchou para fora do salão. Mat não conseguia pensar em outra forma de descrever aquela imponente procissão de uma mulher só.
— Queria ter uma noviça como ela na Torre — disseram Egwene e Elayne, quase em uníssono, e compartilharam um sorriso tenso.
— Escutem isso — interrompeu Moiraine. — “Lews Therin era meu, é meu, e será para sempre meu. Eu o entrego aos seus cuidados, para que fique com ele até a minha chegada.” Está assinado por Lanfear. — A Aes Sedai levou o olhar gélido a Mat. — E você achou que estava tudo acabado? Você é ta’veren, Mat, uma trama mais crucial para o Padrão do que a maioria, e é aquele que soou a Trombeta de Valere. Por enquanto, não há nada terminado para você.
Todos o encaravam. Nynaeve o olhava com tristeza, Egwene, como se nunca o tivesse visto antes, e Elayne parecia esperar que ele se transformasse em outra pessoa. Rhuarc tinha certo respeito no olhar, embora, pensando bem, Mat preferisse ter passado sem isso.
— Bem, é claro — disse. Que me queime! — Eu entendo. — Em quanto tempo será que Thom vai estar bom para viajar? É hora de correr. Talvez Perrin venha com a gente. — Podem contar comigo.
Do lado de fora, os gritos ainda eram ouvidos, sem cessar.
— O Dragão! Al’Thor! O Dragão! Al’Thor! O Dragão! Al’Thor! O Dragão!
E estava escrito que mão alguma além da dele empunharia a Espada encerrada na Pedra, e ele de fato a ergueu, como fogo em sua mão, e sua glória de fato incendiou o mundo. Assim tudo começou. Assim cantamos seu Renascimento. Assim cantamos o início.
GLOSSÁRIO
Nota sobre as datas deste glossário. Três sistemas de registro de datas têm sido amplamente utilizados desde a Ruptura do Mundo. O primeiro contava os anos Depois da Ruptura (DR). Como os anos do evento e os que vieram logo em seguida foram de caos total, e considerando que o calendário foi adotado cerca de cem anos após o fim da Ruptura, sabe-se que o ponto inicial foi definido de forma arbitrária. Ao fim das Guerras dos Trollocs, muitos registros haviam se perdido, de tal modo que havia discussões sobre qual seria o ano inicial exato, de acordo com o antigo sistema. Então, um novo calendário foi estabelecido, datando do fim das Guerras e celebrando a suposta libertação do mundo da ameaça dos Trollocs. Esse segundo calendário registrava cada ano como um Ano Livre (AL). Depois da desorganização, morte e destruição causados pela Guerra dos Cem Anos, surgiu uma terceira forma de registro: é o calendário da Nova Era (NE), que encontra-se atualmente em uso.
Abandonados, os: Nome dado a treze dos mais poderosos Aes Sedai da Era das Lendas, o que os classifica entre os mais poderosos de todos os tempos. Aes Sedai que passaram para o lado do Tenebroso durante a Guerra da Sombra diante da promessa de imortalidade. De acordo com as lendas e fragmentos de registros, foram aprisionados com o Tenebroso quando a prisão dele foi resselada. Seus nomes — entre eles Lanfear, Be’lal, Sammael, Asmodean, Rahvin e Ishamael — ainda são usados para assustar crianças.