O suor brotava na testa de Carridin.
— Senhor Capitão Comandante… — Ele hesitou e engoliu em seco. — Senhor Capitão Comandante parece afirmar que há outra maneira. Basta dizer qual, e juro obedecê-lo.
Agora, pensou Niall. Jogue os dados agora. Uma comichão percorreu sua pele, como se ele estivesse em plena batalha e de súbito percebesse que cada homem a cem passos de distância era um inimigo. Capitães Comandantes não eram executados pelo machado do carrasco, no entanto mais de um morrera de forma inesperada, para então ser rapidamente pranteado e rapidamente substituído por homens de ideias menos controversas.
— Filho Carridin — começou, com a voz firme —, você deverá garantir que esse falso Dragão não morra. E, caso qualquer Aes Sedai se oponha a ele em vez de protegê-lo, pode lançar mão da velha “facada na escuridão”.
O Inquisidor ficou boquiaberto. Contudo, recuperou-se depressa, lançando a Niall um olhar especulativo.
— Matar Aes Sedai é um dever, mas… permitir que um falso Dragão saia por aí? Isso… isso seria… traição. E blasfêmia.
Niall respirou fundo. Podia sentir as facas invisíveis à espreita em meio às sombras. Mas era tarde demais para recuar.
— Não é traição fazer o que precisa ser feito. E mesmo a blasfêmia pode ser tolerada em prol de uma causa. — Essas duas frases, por si só, eram suficientes para matá-lo. — Você sabe como reunir seguidores, Carridin? Sabe qual é a maneira mais rápida? Não? Solte um leão, um leão raivoso, no meio da rua. Quando todos forem tomados pelo pânico, quando todos estiverem com as calças borradas, diga calmamente que você resolverá o problema. Depois mate o leão e ordene que pendurem a carcaça onde todos possam ver. Antes que tenham tempo de pensar, dê outra ordem, e ela será obedecida. Então, se continuar a dar ordens, eles continuarão a obedecê-las, pois você será o homem que salvou suas vidas, e quem melhor para liderá-los?
Carridin moveu a cabeça, confuso.
— O senhor planeja… tomar tudo, Senhor Capitão Comandante? Não só a Planície de Almoth, mas também Tarabon e Arad Doman?
— O que tenho em mente é problema meu. O seu é obedecer conforme o juramento que fez. Espero ter notícias de mensageiros em cavalos velozes partindo para as planícies hoje à noite. Estou certo de que você sabe como emitir as ordens de modo que ninguém suspeite do que não deve. Se tiver que destruir alguém, que sejam tarabonianos e domaneses. Não seria nada bom se eles matassem meu leão. Não, sob a Luz, devemos forçar a paz entre eles.
— Como meu Senhor Capitão Comandante ordenar — disse Carridin, com a voz suave. — Eu escuto e obedeço. — Suave demais.
Niall deu um sorriso frio.
— Caso seu juramento não tenha força o bastante, saiba de uma coisa. Se esse falso Dragão morrer antes que eu ordene, ou se for levado pelas bruxas de Tar Valon, você acordará uma bela manhã com uma adaga cravada no coração. E se qualquer… acidente… me acontecer, ou mesmo que eu morra de velhice, você não durará um mês.
— Senhor Capitão Comandante, eu jurei obedecer…
— Jurou, mesmo — interrompeu-o Niall. — Lembre-se disso. Agora vá!
— Como meu Senhor Capitão Comandante ordenar. — Dessa vez a voz de Carridin não mostrava tanta firmeza.
A porta se fechou atrás do Inquisidor. Niall esfregou as mãos. Sentia frio. Os dados estavam rolando, e não havia como dizer que face mostrariam ao parar. A Última Batalha decerto estava próxima. Não a lendária Tarmon Gai’don, com o Tenebroso se libertando para enfrentar o Dragão Renascido. Não, ele estava certo. Os Aes Sedai da Era das Lendas podem ter aberto um buraco na prisão do Tenebroso em Shayol Ghul, mas Lews Therin Fratricida e seus Cem Companheiros a selaram outra vez. O contra-ataque havia maculado a metade masculina da Fonte Verdadeira para sempre e os deixado todos loucos, e assim teve início a Ruptura. Mas um desses antigos Aes Sedai era capaz de fazer sozinho o que dez bruxas de Tar Valon dos dias atuais juntas jamais conseguiriam. Os selos que eles fizeram aguentariam.
Pedron Niall era um homem de lógica calculista, e havia chegado a uma conclusão sobre como seria Tarmon Gai’don. Hordas de Trollocs marchariam da Grande Praga em direção ao sul, como nas Guerras dos Trollocs dois mil anos antes, sob o comando de Myrddraal, os Meios-homens, e talvez até de novos Senhores do Medo humanos surgidos entre os Amigos das Trevas. A humanidade, dividida entre nações em guerra, não poderia oferecer resistência. Mas ele, Pedron Niall, uniria os homens sob o estandarte dos Filhos da Luz. Novas lendas surgiriam para contar como Pedron Niall lutara em Tarmon Gai’don e vencera.
— Primeiro — murmurou —, solte um leão raivoso no meio da rua.
— Um leão raivoso?
Niall deu meia-volta, e um homenzinho ossudo com um nariz enorme aquilino deslizou por detrás de um dos estandartes pendurados. Houve apenas o vaivém de um painel se fechando quando o estandarte caiu de volta na parede.
— Eu lhe mostrei essa passagem, Ordeith — rosnou Niall —, para que você entrasse quando eu o chamasse sem que metade da fortaleza tomasse conhecimento, e não para que escutasse minhas conversas particulares.
Ordeith fez uma reverência suave ao cruzar o aposento.
— Escutar, Grande Senhor? Eu jamais faria tal coisa. Cheguei neste instante e não pude deixar de ouvir suas palavras finais. Nada mais que isso. — O sujeito tinha um sorriso meio zombeteiro que Niall jamais vira deixar seu rosto, mesmo quando não havia razão para desconfiar de que alguém o estivesse observando.
Um mês antes, em pleno inverno, o homenzinho desengonçado chegara a Amadícia, em farrapos e quase congelado, e dera um jeito de levar na lábia todas as camadas de sentinelas até chegar a Pedron Niall em pessoa. Parecia saber coisas sobre os eventos na Ponta de Toman que não constavam nos relatórios extensos, embora obscuros, de Carridin, e muito menos nas histórias de Byar ou em qualquer outro comunicado ou rumor que tivesse chegado a Niall. Seu nome era falso, naturalmente. Na língua antiga, Ordeith significava “amargura”. Contudo, quando Niall o questionou a respeito, o homem disse apenas: “Quem fomos está perdido aos homens, e a vida é amarga.” Mas o sujeito era sagaz. Fora ele quem havia ajudado Niall a perceber o padrão que emergia nos eventos.
Ordeith andou até a mesa e pegou um dos desenhos. Ao desenrolá-lo, revelou o rosto do jovem rapaz e abriu ainda mais o sorriso, quase fazendo uma careta.
Niall ainda estava irritado com o homem que entrara sem ser chamado.
— Você acha engraçado um falso Dragão, Ordeith, ou ele o assusta?
— Um falso Dragão? — perguntou Ordeith, baixinho. — Sim. Sim, é claro, deve ser. Quem mais poderia ser? — Ele soltou uma risada estridente que deu nos nervos de Niall. Às vezes, o homem pensava que Ordeith era no mínimo um pouco louco.
Mas, louco ou não, o sujeito é esperto.
— O que quer dizer, Ordeith? Parece que você o conhece.
Ordeith levou um susto, como se tivesse se esquecido da presença do Senhor Capitão Comandante.
— Que eu o conheço? Ah, sim, eu o conheço. Seu nome é Rand al’Thor. Ele é de Dois Rios, no interior de Andor, e é um Amigo das Trevas tão enterrado na Sombra que faria a alma do senhor se encolher de medo.
— Dois Rios — comentou Niall, pensativo. — Alguém mencionou outro Amigo das Trevas de lá, outro jovem. É estranho pensar que Amigos das Trevas venham de um lugar como aquele. Mas a verdade é que eles estão em toda parte.