Carridin emitiu um som que era metade gemido, metade lamúria. Pensou que fosse quebrar o pescoço.
Com um rosnado, o Myrddraal o arremessou do outro lado do aposento. Carridin bateu na parede e deslizou até o tapete, atordoado. Com a cara no chão, lutou para respirar.
— Está me entendendo, humano?
— Eu… eu ouço e obedeço — conseguiu dizer Carridin, com a cara enfiada no tapete. Não houve resposta.
Ele virou a cabeça, encolhendo-se pela dor no pescoço. Não havia mais ninguém no recinto. Meios-homens cavalgavam as sombras como cavalos, diziam as lendas, e desapareciam quando se viravam de lado. Nenhuma parede era capaz de detê-los. Carridin quis chorar. Levantou-se, maldizendo a fisgada de dor no pulso.
A porta se abriu, e Sharbon adentrou depressa, um homem roliço com um cesto nos braços. Ele parou e encarou Carridin.
— Mestre, o senhor está bem? Perdoe-me por não estar aqui, mestre, mas fui comprar frutas para seu…
Com a mão boa, Carridin acertou o cesto que Sharbon segurava, fazendo as maçãs de inverno mirradas rolarem pelo tapete, e deu um tapa no rosto do homem.
— Perdoe-me, mestre — sussurrou Sharbon.
— Traga papel, caneta e tinta — rosnou Carridin. — Ande logo, seu idiota! Preciso enviar algumas ordens. — Mas quais? Quais? Enquanto Sharbon corria para obedecê-lo, Carridin encarou as marcas no tampo da mesa e estremeceu.
E muitos serão seus caminhos, e muitos saberão seu nome, pois muitas vezes ele renascerá entre nós, sob diversas formas, como foi e sempre será, tempo sem fim. Sua vinda será como a ponta afiada do arado, revirando e sulcando nossas vidas a começar do ponto onde jazemos em silêncio. O destruidor de elos, o forjador de correntes. O fazedor de futuros, o desmoldador do destino.
1
À Espera
A Roda do Tempo gira, e as Eras vêm e vão, deixando memórias que se transformam em lendas. As lendas desvanecem em mitos, e até o mito já está há muito esquecido quando a Era que lhes deu origem retorna. Em uma Era, chamada por alguns de a Terceira Era, uma Era ainda por vir, uma Era há muito passada, um vento se ergueu nas Montanhas da Névoa. O vento não era o início. O girar da Roda do Tempo não tem inícios nem fins. Mas era um início.
O vento varria extensos vales, vales sombrios onde a bruma da manhã pairava, suspensa no ar, uns repletos de árvores perenes, outros nus, onde capim e flores silvestres em breve brotariam. Silvava por ruínas semienterradas e monumentos destruídos, todos tão esquecidos quanto aqueles que os haviam erguido. Gemia nas passagens, fissuras abertas pelo tempo entre picos cobertos de neve que jamais derretia. Nuvens espessas agarravam-se ao cume das montanhas, fazendo a neve e o nevoeiro branco se tornarem um.
Nas planícies, o inverno estava terminando ou prestes a terminar, embora ali nas alturas ainda resistisse, forrando as encostas com largos retalhos brancos. Apenas as árvores perenes mantinham as folhas, todas as outras permaneciam nuas, marrons e cinzentas, junto ao solo pedregoso ainda congelado. Não havia som além das rajadas cortantes de vento sobre a neve e as pedras. A terra parecia à espera. À espera de uma explosão.
Sentado em seu cavalo, bem no meio de uma mata de pinheiros e folhas-de-couro, Perrin Aybara tremia e apertava o manto forrado de pele ainda mais no corpo, o máximo que podia com um arco longo em uma das mãos e um enorme machado em forma de meia-lua no cinto. Era um bom machado de aço frio. Fora Perrin quem bombeara o fole no dia em que mestre Luhhan o fabricara. O vento balançava o manto, puxando o capuz para trás dos cachos desgrenhados, penetrando pelo casaco. Perrin agitava os dedos dos pés dentro das botas para se aquecer e se remexia sobre a sela de cepilho alto, mas de fato não prestava atenção ao frio. Observando os cinco companheiros, ele se perguntou se também sentiam aquilo. Não a espera por que haviam sido enviados até lá, mas algo mais.
Galope, seu cavalo, se mexia e sacudia a cabeça. Ele nomeara o garanhão castanho por conta das pernas ágeis, mas no momento Galope parecia sentir a irritação e impaciência do cavaleiro. Estou cansado de toda essa espera, de ficar aqui sentado enquanto Moiraine nos mantém sob rédeas curtas. Que a Luz queime aquela Aes Sedai! Quando isso vai terminar?
Sem pensar, farejou o vento. O cheiro de cavalo predominava no ar, junto com o de homens e de suor masculino. Um coelho passara por aquelas árvores não fazia muito tempo, correndo, impulsionado pelo medo, mas a raposa em seu encalço não o matara ali. Ele percebeu o que estava fazendo e parou. Achei que meu nariz ficaria entupido com todo esse vento. Quase desejou que de fato estivesse. E eu não deixaria Moiraine fazer nada a respeito.
Estava desconfiado de algo. Recusava-se a pensar no assunto. Não mencionou a sensação aos companheiros.
Os outros cinco homens permaneciam sentados em suas selas, arcos curtos a postos, os olhos esquadrinhando tanto o céu quanto as encostas com árvores escassas abaixo. Pareciam imperturbáveis pelo vento que agitava os mantos como estandartes. O cabo de uma espada de duas mãos aparecia por uma abertura no manto sobre o ombro de cada um dos homens. A visão das cabeças desnudas, completamente raspadas, a não ser pelos rabos de cavalo, fez Perrin sentir ainda mais frio. Para eles, aquele tempo já era plena primavera. Tiveram toda a brandura removida a marteladas, em uma forja mais dura que ele jamais vira. Eram shienaranos, vindos das Terras da Fronteira com a Grande Praga, onde ataques de Trollocs poderiam ocorrer bem no meio da noite, onde até um mercador ou fazendeiro poderia ter que pegar em arcos ou espadas. E aqueles homens não eram fazendeiros, mas soldados, quase desde o nascimento.
Às vezes, ele refletia sobre a forma como aqueles homens respondiam a ele e seguiam sua liderança. Era como se o considerassem detentor de algum direito especial, algum conhecimento inacessível a eles. Ou talvez apenas sejam meus amigos, pensou, com sarcasmo. Não eram altos como ele, nem tão grandes, pois os anos como aprendiz de ferreiro lhe renderam braços e ombros com o dobro do tamanho da maioria, mas Perrin passara a se barbear todos os dias para acabar com as piadas acerca de sua pouca idade. Eram amistosas, mas ainda assim eram piadas. Não queria que começassem outra vez apenas por ele mencionar uma desconfiança.
Com um susto, Perrin lembrou-se de que também deveria estar atento. Conferindo a flecha encaixada no arco longo, observou o vale que corria pelo oeste e se estendia a distância, o chão entremeado com faixas amplas de neve, resquícios da estação fria. A maioria das árvores dispersas lá embaixo ainda tentavam agarrar o céu com os galhos rígidos do inverno, mas havia bastante árvores perenes, pinheiros, folhas-de-couro, abetos, azevinhos e até um pouco de madeira-verde nas encostas do vale e na parte baixa para dar cobertura a qualquer um que soubesse tirar proveito delas. Porém, ninguém iria até ali sem um propósito específico. As minas eram todas muito distantes ao sul, e mais distantes ainda ao norte. A maioria das pessoas acreditava que as Montanhas da Névoa traziam mau agouro, e poucos adentravam-nas se pudessem evitar. Os olhos de Perrin brilhavam como ouro polido.
A desconfiança cresceu dentro dele. Não!
Ele era capaz de deixá-la de lado, mas a sensação não o abandonava. Como se cambaleasse à beira de um precipício. Como se tudo o mais cambaleasse. Ele se perguntou se haveria algo desagradável nas montanhas ao redor. Talvez houvesse uma forma de saber. Em lugares como aquele, onde os homens raramente pisavam, quase sempre havia lobos. Ele parou antes que o pensamento se formasse por completo em sua mente. É melhor continuar imaginando. Melhor do que isso. Eles não eram muitos em número, mas tinham batedores. Se houvesse algo por perto, os outros encontrariam. Esta é a minha forja. Cuidarei dela e deixarei que cuidem das deles.