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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

momento, prestes a abandonar definitivamente o mundo, como se estivesse suspensa de um delgado fio que fosse o seu último pensamento, um puro pensar sem objecto nem palavras, apenas saber que se está pensando e não poder saber em quê e para que fim. Despertou em sobressalto, porque no sono, subitamente, vindo duma treva maior, lhe apareceu o rosto do mendigo, e de pois aquele seu grande corpo coberto de farrapos, o anjo, se anjo era, entrara no sonho sem se anunciar, nem sequer por uma fortuita lembrança, e ali estava a olhá-la, com um ar absorto, talvez também uma levíssima expressão de interrogativa curiosidade, ou nem mesmo isso, que o tempo de notá-lo viera e passara, e agora o coração de Maria palpitava como uma ave assustada, e ela não sabia se tivera medo ou se alguém lhe dissera ao ouvido uma inesperada e embaraçosa palavra. Os homens e os rapazes continuavam ali, sentados no chão, e as mulheres, afogueadas, iam e vinham, oferecendo os últimos alimentos, mas já se notavam os sinais da saciedade, só o ruído das conversas, animadas pelo vinho, é que subira de tom. Maria levantou-se e ninguém reparou nela. A noite fechara-se por completo, a luz das estrelas, no céu limpo e sem lua, parecia produzir uma espécie de ressonância, um zumbido que raiava as fronteiras do inaudível, mas que a mulher de José podia sentir na pele, e também nos ossos, de um modo que não saberia explicar, como uma suave e voluptuosa convulsão que não acabasse de resolver-se. Maria atravessou o pátio e foi olhar para fora. Não viu ninguém. A cancela da sua casa, ao lado, estava cerrada, tal qual a tinha deixado, mas o ar movia-se como se alguém tivesse acabado de passar por ali, a correr, ou voando, para não deixar da sua passagem mais do que um fugaz sinal, que outros não saberiam entender.

Passados que foram três dias, tendo chegado a acordo com os clientes que lhe haviam encomendado obras que teriam de esperar o seu regresso, feitas as despedidas na sinagoga e confiada a casa e os bens visíveis nela existentes aos cuidados do vizinho Ananias, partiu de Nazaré o carpinteiro José com sua mulher, caminho de Belém, aonde vai para recensear-se, e a ela também, em conformidade com os decretos que de Roma vieram. Se, por um atraso nas comunicações ou enguiço da tradução simultânea, ainda não chegou ao céu notícia de tais ordens, muito admirado deverá estar o Senhor Deus, ao ver tão radicalmente mudada a paisagem de Israel, com magotes de gente a viajarem em todas as direcções, quando o próprio e o natural, nestes dias logo a seguir à Páscoa, seria deslocarem-se as pessoas, salvo justificadas excepções, de um modo por assim dizer centrífugo, tomando o caminho de casa a partir de um único ponto central, sol terrestre ou umbigo luminoso, de Jerusalém falamos, claro está. Sem dúvida, a força do costume, ainda que falível, e a perspicácia divina, essa absoluta, tornarão fácil o reconhecimento e identificação, mesmo de tão alto, do lento avanço que mostra o regresso dos peregrinos às suas cidades e aldeias, mas o que, ainda assim, não pode deixar de confundir a vista é o cruzar dessas rotas, conhecidas, com outras que parecem traçadas à aventura e que são, nem mais nem menos, os itinerários daqueles que, tendo ou não celebrado em Jerusalém a Páscoa do Senhor, obedecem agora às profanas ordens de César, embora não devesse ser muito custoso sustentar uma tese diferente, a de ser César Augusto quem, sem o saber, está afinal obedecendo à vontade do Senhor, se é verdade ter Deus decidido, por razões que só ele conhece, que José e sua mulher estariam fadados, nesta altura da vida, a ir a Belém. Extemporâneas e fora de propósito à primeira vista, estas considerações devem ser recebidas como pertinentíssimas, tendo em conta que é graças a elas que nos será possível chegar à infirmação objectiva daquilo que a alguns espíritos tanto agradaria encontrar aqui, por exemplo, imaginar os nossos viajantes, sozinhos, atravessando aquelas paragens inóspitas, aqueles descampados inquietantes, sem vivalma próxima e fraterna, apenas confiados à misericórdia de Deus e ao amparo dos anjos. Ora, logo à saída de Nazaré se pôde ver que não vai ser assim, pois com José e Maria viajarão duas outras famílias, das numerosas, ao todo, entre velhos, crescidos e crianças, cerca de vinte pessoas, quase uma tribo. Certo é que não se dirigem a Belém, uma delas ficará a meio caminho, numa povoação perto de Ramalá, e a outra continuará muito para o sul, até Bercheva, porém, mesmo que hajam de separar-se antes, por irem mais depressa uns do que outros, hipótese sempre provável, sempre estarão a descer à estrada novos viajantes, sem contar com os que hão-de vir andando em sentido contrário, talvez, quem sabe, a recensear-se em Nazaré, donde agora estes estão saindo. Os homens caminham à frente, num grupo só, e com eles vão os rapazes que já fizeram treze anos, ao passo que as mulheres, as meninas e as velhas, de todas as idades, formam outro confuso grupo lá atrás, acompanhadas pelos garotos 16

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pequenos. No momento em que iam pôr o pé na estrada, os homens, em coro solene, altearam a voz para proferir as bênçãos próprias da circunstância, repetindo-as as mulheres discretamente, quase em surdina, como quem aprendeu que não ganha nada em clamar quem de ser ouvido poucas esperanças tenha, mesmo quando não pediu nem pedirá, e tudo esteja louvando. Entre as mulheres, a única que vai grávida neste estado de adiantamento é Maria, e as suas dificuldades são tais que se não fosse ter a Providência dotado os burros que criou de uma paciência infinita e não menor fortaleza, poucos passos seriam andados e já esta outra pobre criatura teria rendido o ânimo, rogando que ali a deixassem ficar, na berma da estrada, à espera da sua hora, que sabemos está para breve, a ver onde e quando, porém isto não é gente afeiçoada ao gosto das apostas, neste caso acertar em quando e onde nascerá o filho de José, sensata religião é esta que proibiu o azar. Enquanto não chega o momento, e por todo o tempo que ainda tiver de padecer a espera, a grávida poderá contar, mais do que com as poucas e distraídas atenções do seu marido, entretido como irá na conversa dos homens, poderá contar, dizíamos, com a provada mansidão e os dóceis lombos do animal, que vai estranhando, ele próprio, se mudanças de vida e de carga podem chegar ao entendimento de um burro, a falta dos golpes de chibata, e sobretudo que lhe esteja sendo consentido caminhar sem pressas, pelo seu passo natural, seu e dos seus semelhantes, que alguns como ele vão na jornada. Por causa desta diferença, atrasa-se às vezes o grupo das mulheres, e, quando tal acontece, os homens, lá adiante, fazem uma paragem e ficam à espera de que elas se aproximem, porém não tanto que cheguem a reunir-se umas e outros, estes vão mesmo ao ponto de fingir que pararam somente para descansar, não há dúvida de que a estrada a todos serve, mas já se sabe que onde cantarem galos não hão-de as galinhas piar, quando muito cacarejem se puseram ovo, assim o tem imposto e proclamado a boa ordenação do mundo em que nos calhou viver. Vai pois Maria embalada na suave andadura do seu corcel, rainha entre as mulheres, que só ela vai montada, a restante burricada transporta carga geral. E, para que não sejam tudo sacrifícios, leva ao colo, ora uma, ora outra, três crianças do rancho, com o que vão folgando as mães respectivas e ela começa a habituar-se ao carrego que a espera. Neste primeiro dia de viagem, porque as pernas ainda não estavam feitas ao caminho, a etapa não foi extremadamente longa, é preciso não esquecer que vão na mesma companhia velhos e meninos pequenos, uns que, tendo vivido, gastaram todas as suas forças e agora não podem mais fingir que as têm, outros que, por não saberem governar as que começam a ter, as esgotam em duas horas de carreiras desatinadas, como se o mundo estivesse para acabar e valesse a pena aproveitar os últimos instantes dele. Fizeram alto numa aldeia grande, chamada Isreel, onde havia um caravançarai, o qual, por serem estes dias, como dissemos, de intenso tráfego, foram encontrar numa confusão e num alarido que parecia de doidos, embora, a falar verdade, fosse o alarido maior que a confusão, porquanto, ao cabo de algum tempo, habituados vista e ouvido, podia-se pressentir, primeiro, e logo reconhecer, naquele adjunto de gente e de animais em constante movimento dentro dos quatro muros, uma vontade de ordem não organizada nem consciente, tal um formigueiro assustado que buscasse reconhecer-se e recompor-se em meio da sua própria dispersão. Ainda assim, tiveram as três famílias a sorte de poder acolher-se ao abrigo de um arco, arrumando-se os homens a um lado e as mulheres a outro, mas isto foi mais tarde, quando a noite de todo se fechou e o caravançarai, animais e pessoas, se entregou ao sono. Antes tiveram as mulheres que preparar a comida e encher os odres no poço, enquanto os homens descarregavam os burros e os levavam a beber, mas numa ocasião em que não houvesse camelos no bebedouro, porque estes, em não mais que dois brutos sorvos, punham a caleira da água a seco, e era preciso voltar a enchê-la vezes sem conta antes que se dessem por satisfeitos. Ao cabo, postos primeiramente os burros à manjedoura, sentaram-se os viajantes a comer, principiando pelos homens, que as mulheres já sabemos que em tudo são secundárias, basta lembrar uma vez mais, e não será a última, que Eva foi criada depois de Adão e de uma sua costela, quando será que aprenderemos que há certas coisas que só começaremos a perceber quando nos dispusermos a remontar às fontes. Ora, depois de os homens terem comido, e enquanto as mulheres, lá no seu canto, se alimentavam com o que tinha sobejado, aconteceu que um ancião entre os anciãos, que vivendo em Belém ia recensear-se a Ramalá e se chamava Simeão, usando da autoridade que lhe conferia a idade, e da sabedoria que se acredita ser seu directo efeito, interpelou José sobre como pensava ele que deveria proceder-se se viesse a verificar-se a hipótese, obviamente possível, de Maria, porém não lhe pronunciou o nome, não vir a dar à luz antes do último dia do prazo imposto para o recenseamento. Tratava-se, 17