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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
Como um sopro gelado, uma transida frialdade, a morte de Lázaro apagou de golpe o ardor combatente que João havia feito nascer no ânimo de Jesus e em que, durante uma arrastada semana de reflexão e alguns breves instantes de acção, se tinham confundido, num sentimento único, o serviço de Deus e o serviço do povo. Passados os primeiros dias do luto, quando, aos poucos, as obrigações e os hábitos do quotidiano principiavam a retomar o espaço perdido, pagando-o com momentâneos adormecimentos duma dor que não cedia, foram Pedro e André falar a Jesus, perguntar-lhe que projectos tinha, se se iriam outra vez a pregar às cidades ou voltavam a Jerusalém para um novo assalto, pois já os discípulos se andavam queixando da prolongada inactividade, que assim não pode ser, não foi para isto que deixámos fazenda, trabalho e família. Jesus olhou-os como se os não distinguisse entre os seus próprios pensamentos, ouviu-os como se tivesse de identificar-lhes as vozes no meio de um coro de gritos desencontrados, e ao cabo de um longo silêncio disse-lhes que o esperassem um pouco mais, que tinha ainda de pensar, que sentia estar para acontecer algo que definitivamente decidiria das suas vidas e das suas mortes. Também disse que não tardaria a juntar-se a eles no acampamento, e isto não o puderam entender nem Pedro nem André, ficarem as irmãs sozinhas quando ainda estava por resolver o que fariam os homens, Não precisas voltar para nós, melhor é que te deixes estar, disse Pedro, que não podia saber que Jesus estava vivendo entre dois tormentos, o dos seus deveres para com homens e mulheres que tudo tinham largado e abandonado para o seguirem, e aqui, nesta casa, com estas duas irmãs, iguais e inimigas como o rosto e o espelho, uma contínua, minuciosa, arrepiante dilaceração moral. Lázaro estava presente e não se retirava.
Estava presente nas duras palavras de Marta, que não perdoava a Maria ter ela impedido a ressurreição do próprio irmão, que não podia perdoar a Jesus a sua renúncia a usar de um poder que recebera de Deus. Estava presente nas lágrimas inconsoláveis de Maria que, por não sujeitar o irmão a uma segunda morte, ia ter de viver, para sempre, com o remorso de não o haver libertado desta.
Estava presente, enfim, corpo imenso enchendo todos os espaços e recantos, na perturbada mente de Jesus, a quádrupla contradição em que se encontrava, concordar com o que Maria dissera e recriminá-
la por tê-lo dito, compreender o pedido de Marta e censurá-la por lho ter feito. Jesus olhava a sua pobre alma e via-a como se quatro cavalos furiosos a estivessem puxando e repuxando em quatro direcções opostas, como se quatro cabos enrolados em cabrestantes lhe rompessem lentamente todas as fibras do espírito, como se as mãos de Deus e as mãos do Diabo, divina e diabolicamente, se entretivessem, jogando ao jogo dos quatro-cantinhos, com o que dele ainda restava. À porta da casa que fora de Lázaro vinham os míseros e os chagados a implorar a cura dos seus ofendidos corpos, às vezes Marta aparecia a expulsá-los, como se protestasse, Não houve salvação para o meu irmão, não haverá cura para vós, mas eles tornavam mais tarde, tornavam sempre, até que conseguiam chegar aonde estava Jesus, que os sarava e mandava embora, porém não lhes dizia, Arrependei-vos, ficar curado era como nascer de novo sem haver morrido, quem nasce não tem pecados seus, não tem que se arrepender do que não fez. Mas estas obras de regeneração física, se não fica mal dizê-lo, sendo embora de misericórdia máxima, deixavam no coração de Jesus um travo ácido, uma espécie de amargo ressaibo, porque, em verdade, não eram elas mais do que adiamentos das decadências inevitáveis, aquele que hoje se foi daqui sano e contente voltará amanhã chorando as novas dores que não terão remédio. Chegou a tristeza de Jesus a um ponto tal que um dia Marta lhe disse, Não me morras tu agora, que então iria saber que coisa era morrer-me Lázaro novamente, e Maria de Magdala, no segredo da escura noite, murmurando sob o lençol comum, queixa e gemido de animal que se escondeu para sofrer, Precisas hoje de mim como nunca precisaste antes, sou eu que não posso alcançar-te onde estás, porque te fechaste atrás duma porta que não é para forças humanas, e Jesus, que a Marta tinha respondido, Na minha morte estarão presentes todas as mortes de Lázaro, ele é o que sempre estará morrendo e não pode ser ressuscitado, pediu e rogou a Maria, Mesmo quando não possas entrar, não te afastes de mim, estende-me sempre a tua mão mesmo quando não puderes verme, se o não fizeres, esquecer-me-ei da vida, ou ela me esquecerá. Dias passados, Jesus foi juntar-se aos discípulos, e Maria de Magdala foi com ele, Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos. Amavam-se e diziam palavras como estas, não apenas por serem belas ou verdadeiras, se é possível ser-se o mesmo ao mesmo tempo, mas porque pressentiam que o tempo das sombras estava 149
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chegando na sua hora, e era preciso que começassem a acostumar-se, ainda juntos, à escuridão da ausência definitiva. Então chegou ao acampamento a notícia da prisão de João o Baptista. Não se sabia mais do que isto, que havia sido preso, e também que o mandara encarcerar o próprio Herodes, motivo por que, não podendo imaginar-se ali outras razões, foram Jesus e a sua gente levados a pensar que a causa do sucedido só podiam ter sido os incessantes anúncios da chegada do Messias, que era a final substância do que João proclamava em todos os lugares, entre baptismo e baptismo, Outro virá que vos baptizará pelo fogo, entre imprecação e imprecação, Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para vir. Disse então Jesus aos discípulos que deviam estar preparados para toda a espécie de vexames e perseguições, pois era de crer que, correndo já o país, e desde não pouco tempo, notícia do que eles próprios andavam a fazer e a dizer no mesmo sentido, concluísse Herodes que dois e dois são quatro e buscasse num filho de carpinteiro, que de ser filho de Deus se gabava, e nos seus seguidores, a segunda e mais poderosa cabeça do dragão que ameaçava deitá-lo abaixo do trono. Sem dúvida, não é melhor uma má notícia do que notícia nenhuma, mas justifica-se que a recebam com serenidade de alma aqueles que, havendo esperado e ansiado por um tudo, se tinham visto, nos últimos tempos, postos diante do nada. Perguntavam-se uns aos outros, e todos a Jesus, que era o que deveriam fazer, se manterem-se juntos, e juntos enfrentarem a maldade de Herodes, ou dispersarem-se pelas cidades, ou, ainda, recolherem-se ao deserto, mantendo-se de mel silvestre e gafanhotos, como fizera João antes de ter de lá saído, para maior glória de Jesus e, pelos vistos, sua própria desgraça. Mas, como não havia sinal de estarem vindo os soldados de Herodes para Betânia a matar estes outros inocentes, puderam demorar-se Jesus e os seus a ponderar as diferentes alternativas, e nisto estavam quando chegaram, num pé só, segunda e terceira notícias, que João havia sido degolado, e que o motivo do encarceramento e execução nada tinha que ver com anúncios de Messias ou reinos de Deus, mas ter ele andado a clamar e a vociferar contra o adultério que o mesmo Herodes cometia tendo casado com Herodíades, sua sobrinha e cunhada, em vida do marido dela. Que João estivesse morto, foi causa de numerosas lágrimas e lamentações em todo o acampamento, não se notando, entre homens e mulheres, diferença nas expressões da mágoa, mas que ele tivesse sido morto pelo motivo que se dizia, era algo que escapava à compreensão de quantos ali estavam, porque uma outra razão, essa, sim, suprema, deveria ter prevalecido na sentença de Herodes, e, afinal, era como se ela não tivesse existência hoje nem devesse ter qualquer importância amanhã, dizia-o em cólera Judas de Iscariote, a quem, como estaremos lembrados, tinha João baptizado, Que é isto, perguntava a toda a companhia reunida, mulheres incluídas, anuncia João que vem aí o Messias a redimir o povo e matam-no por denúncias de concubinato e adultério, de cama e casamento de tio e cunhada, como se nós não soubéssemos que esse foi sempre o viver corrente e comum da família, desde o primeiro Herodes aos dias que vivemos, Que é isto, repetia, se foi Deus quem mandou João a anunciar o Messias, e eu não duvido, pela simples razão de que nada pode acontecer sem que o tivesse querido Deus, se foi Deus, expliquem-me então os que dele conhecem mais do que eu por que quer ele que os seus próprios desígnios sejam assim rebaixados na terra, e, por favor, não argumenteis que Deus sabe e nós não podemos saber, porque eu vos responderia que o que quero saber é precisamente o que Deus sabe. Passou um frio de medo por toda a assembleia, como se a ira do Senhor viesse já a caminho para fulminar o ousado e todos os demais que, imediatamente, o não tinham feito pagar a blasfémia. Ora, não estando ali Deus presente para dar satisfação a Judas de Iscariote, o desafio só podia ser levantado por Jesus, que era quem por mais perto andava do supremo interpelado. Fosse outra a religião e a situação outra, talvez que as coisas tivessem ficado por aqui, por este sorriso enigmático de Jesus, em que, apesar de tão leve e fugidio, fora possível reconhecer três partes, uma de surpresa, outra de benevolência, outra de curiosidade, o que, parecendo muito, nada era, por ser a surpresa instantânea, condescendente a benevolência, fatigada a curiosidade. Mas o sorriso, assim como veio, assim se foi, e o que no seu lugar ficou foi uma palidez mortal, um rosto subitamente cavado, de quem acabou de ver, em figura e em presença, o seu próprio destino. Numa voz lenta, em que quase não havia expressão, Jesus disse enfim, Retirem-se as mulheres, e Maria de Magdala foi a primeira a levantar-se. Depois, quando o silêncio, pouco a pouco, se converteu em muralha e tecto para fechá-los na mais funda caverna da terra, Jesus disse, Pergunte João a Deus por que fez morrer assim, por uma causa tão mesquinha, quem tão grandes coisas tinha vindo anunciar, disse e calou-se por um momento, e como Judas de Iscariote parecia querer falar, levantou a mão para que 150