Выбрать главу

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

sobrestivesse e concluiu, O meu dever, acabei de compreender agora, é dizer-vos eu o que sei do que Deus sabe, se não mo vai impedir o mesmo Deus. Entre os discípulos cresceu um rumor de palavras trocadas em voz alterada, um desassossego, uma excitação inquieta, temiam saber o que por saber ansiavam, só Judas de Iscariote mantinha a expressão de desafio com que provocara o debate. Disse Jesus, Sei o meu destino e o vosso, sei o destino de muitos dos que hão-de nascer, conheço as razões de Deus e os seus desígnios, e de tudo isto devo falar-vos porque a todos toca e mais tocará ainda no futuro, Porquê, perguntou Pedro, por que temos nós de saber o que te foi transmitido por Deus, melhor seria que te calasses, Estaria no poder de Deus fazer-me calar agora mesmo, Então, calares ou não calares tem a mesma importância para Deus, significa o mesmo nada, e se Deus tem falado pela tua boca, pela tua boca irá continuar a falar, mesmo quando, como agora, julgues contrariar a sua vontade, Tu sabes, Pedro, que serei crucificado, Disseste-mo, Mas não te disse que tu próprio, e André, e Filipe, o sereis também, que Bartolomeu será esfolado, que a Mateus o matarão bárbaros, que a Tiago filho de Zebedeu o degolarão, que o segundo Tiago, filho de Alfeu, será lapidado, que Tomé será alanceado, que a Judas Tadeu lhe esmagarão a cabeça, que Simão será cortado por uma serra, isto não o sabias, mas sabe-lo agora, e sabem-no todos. A revelação foi recebida em silêncio, não havia mais motivo para ter medo de um futuro que se dera a conhecer, era como se, afinal, Jesus apenas lhes tivesse dito, Morrereis, e eles lhe respondessem em coro, Grande novidade, isso já nós sabíamos. Mas João e Judas de Iscariote não ouviram que deles se falasse, e por isso perguntaram, E

eu, e Jesus disse, Tu, João, chegarás a velho e de velho morrerás, quanto a ti, Judas de Iscariote, evita as figueiras, não tarda que te vás a enforcar numa por tuas próprias mãos, Morreremos, então, por tua causa, disse uma voz, mas não se soube de quem havia sido, Por causa de Deus, não por minha causa, respondeu Jesus, Que quer Deus, afinal, perguntou João, Quer uma assembleia maior do que aquela que tem, quer o mundo todo para si, Mas se Deus é senhor do universo, como pode o mundo não ser seu, e não desde ontem ou amanhã, mas desde sempre, perguntou Tomé, Isso não sei, disse Jesus, Mas tu, que durante tanto tempo viveste com todas essas coisas no coração, por que no-las vens contar agora, Lázaro, que eu curei, morreu, João Baptista, que me anunciou, morreu, a morte já está entre nós, Todos os seres têm de morrer, disse Pedro, os homens como os outros, Morrerão muitos no futuro por vontade de Deus e causa sua, Se é vontade de Deus, é causa santa, Morrerão porque não nasceram antes nem depois, Serão recebidos na vida eterna, disse Mateus, Sim, mas não deveria ser tão dolorosa a condição para lá entrar, Se o filho de Deus disse o que disse, a si próprio se negou, protestou Pedro, Enganas-te, só ao filho de Deus é permitido falar assim, o que na tua boca seria blasfémia, na minha é a outra palavra de Deus, respondeu Jesus, Falas como se tivéssemos de escolher entre ti e Deus, disse Pedro, Sempre a vossa escolha terá de ser entre Deus e Deus, eu estou como vós e os homens, no meio, Que mandas então que façamos, Que ajudeis a minha morte a poupar as vidas dos que hão-de vir, Não podes ir contra a vontade de Deus, Não, mas o meu dever é tentar, Tu estás salvo porque és filho de Deus, mas nós perderemos a nossa alma, Não, se decidirdes obedecer-me, é ainda a Deus que estareis obedecendo. No horizonte, lá no último fim do deserto, apareceu o bordo duma lua vermelha. Fala, disse André, mas Jesus esperou que a lua toda se levantasse da terra, enorme e sangrenta, a lua, e só depois disse, O filho de Deus deverá morrer na cruz para que assim se cumpra a vontade do Pai, mas, se no lugar dele puséssemos um simples homem, já não poderia Deus sacrificar o Filho, Queres pôr um homem no teu lugar, um de nós, perguntou Pedro, Não, eu é que irei ocupar o lugar do Filho, Em nome de Deus, explica-te, Um simples homem, sim, mas um homem que se tivesse proclamado a si mesmo rei dos Judeus, que andasse a levantar o povo para derrubar Herodes do trono e expulsar da terra os romanos, isto é o que vos peço, que corra um de vós ao Templo a dizer que eu sou esse homem, e talvez que, se a justiça for rápida, não tenha a de Deus tempo de emendar a dos homens, como não emendou a mão do carrasco que ia degolar João. O assombro tolheu a voz de todos, mas por pouco tempo, que logo de todas as bocas saltaram palavras de indignação, de protesto, de incredulidade, Se és o filho de Deus, como filho de Deus tens de morrer, clamava um, Comi do pão que repartiste, como poderia agora denunciar-te, gemia outro, Não queira ser rei dos Judeus aquele que vai ser rei do mundo, dizia este, Morra logo quem daqui se mover para acusar-te, ameaçava aquele. Foi então que se ouviu, clara, distinta, por cima do alvoroço, a voz de Judas de Iscariote, Eu vou, se assim o queres. Lançaram-lhe os outros as mãos, e já havia facas saindo das dobras das túnicas, quando Jesus ordenou, Larguem-no, 151