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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

que ninguém lhe faça mal. Depois levantou-se, abraçou-o e beijou-o nas duas faces, Vai, a minha hora é a tua hora. Sem uma palavra, Judas de Iscariote lançou a ponta do manto por cima do ombro e, como se a noite o tivesse engolido, desapareceu na escuridão. Os guardas do Templo e os soldados de Herodes vieram prender Jesus na primeira luz da manhã. Depois de cercarem caladamente o acampamento, entraram de rompante uns tantos, armados de espada e lança, e o que neles mandava gritou, Onde está esse que diz ser rei dos Judeus, e outra vez, Que se apresente esse que diz ser o rei dos Judeus, então Jesus saiu da sua tenda, estava com ele Maria de Magdala que vinha chorando, e disse, Eu sou o rei dos Judeus. Então foi-se para ele um soldado que lhe atou as mãos, ao mesmo tempo que lhe dizia em voz baixa, Se, apesar de ires preso hoje, vieres um dia a ser meu rei, lembra-te de que foi por ordem doutro que te vim prender, dirás então que o prenda a ele, e eu obedecer-te-ei, como agora obedeci, e Jesus disse, Um rei não prende outro rei, um deus não mata outro deus, para que houvesse quem prendesse e matasse é que foram feitos os homens comuns. Lançaram também a Jesus uma corda aos pés para que não pudesse fugir, e Jesus disse consigo mesmo, porque assim o cria, Tarde chega, eu já fugi. Foi então que Maria de Magdala deu um grito como se se lhe estivesse rompendo a alma, e Jesus disse, Chorarás por mim, e vós, mulheres, todas haveis de chorar, se for chegada uma hora igual para estes que aqui estão e para vós próprias, mas sabei que, por cada lágrima vossa, se derramariam mil no tempo que há-de vir se eu não fosse acabar como é minha vontade. E, voltando-se para o que mandava, disse, Deixa ir estes homens que estavam comigo, eu é que sou o rei dos Judeus, não eles, e, sem mais, avançou para o meio dos soldados, que o rodearam. O sol tinha aparecido e subia no céu, por cima das casas de Betânia, quando a multidão de gente, com Jesus posto adiante, entre dois soldados que seguravam as pontas da corda que lhe atava as mãos, começou a subir a estrada para Jerusalém. Atrás iam os discípulos e as mulheres, eles irados, elas soluçando, mas tanto era o que valiam os soluços dumas como a ira doutros, Que devemos fazer, perguntavam-se à boca pequena, saltar sobre os soldados e tentar libertar Jesus, morrendo talvez na luta, ou dispersar-nos antes que venha também ordem de prisão para nós, e como não eram capazes de escolher entre isto e aquilo, nada fizeram, e foram seguindo, a distância, o destacamento da tropa. Em certa altura, viram que o grupo da frente tinha parado e não perceberam porquê, salvo se viera contra-ordem e agora estavam desatando os nós de Jesus, mas para pensar tal coisa era preciso ser muito louco da imaginação, e alguns havia, porém não tanto. Desatara-se um nó, de facto, mas o da vida de Judas de Iscariote, ali, numa figueira à beira do caminho por onde Jesus teria de passar, pendurado pelo pescoço, estava o discípulo que se apresentara voluntário para que pudesse ser cumprida a derradeira vontade do mestre. O que comandava a escolta fez sinal a dois soldados para que cortassem a corda e descessem o corpo, Ainda está quente, disse um deles, bem podia ser que Judas de Iscariote, sentado no ramo da figueira, já com o laço da corda passado ao pescoço, tivesse estado, pacientemente, à espera de ver aparecer Jesus, lá longe, na curva da estrada, para do ramo abaixo se lançar, em paz consigo mesmo por ter cumprido o seu dever. Jesus aproximou-se, não o impediram os soldados, e olhou demoradamente a cara de Judas, retorcida pela rápida agonia, Ainda está quente, tornara a dizer o soldado, então pensou Jesus que podia, se quisesse, fazer a este homem o que a Lázaro não fizera, ressuscitá-lo, para que viesse a ter, noutro dia, noutro lugar, a sua própria e irrenunciável morte, distante e obscura, e não a vida e a memória intermináveis duma traição. Mas é sabido que só o filho de Deus tem o poder de fazer ressuscitar, não o tem o rei dos Judeus que aqui vai, de espírito mudo e pés e mãos atados. O que mandava disse, Deixem-no aí para que o enterrem os de Betânia ou o comam os corvos, mas vejam primeiro se tem valores, e os soldados procuraram e não acharam, Nem uma moeda, disse um deles, não havia de que admirar-se, o dos fundos da comunidade era Mateus, que sabia do ofício, tendo sido publicano no tempo em que se chamava Levi. Não lhe pagaram a denúncia, murmurou Jesus, e o outro, que o ouvira, respondeu, Quiseram-no, mas ele disse que tinha por costume pagar as suas contas, e aí está, já não as paga mais. Seguiu adiante a marcha, alguns discípulos ficaram a olhar piedosamente o cadáver, mas João disse, Deixemo-lo, esse não era dos nossos, e o outro Judas, o que também é Tadeu, acudiu a emendar, Queiramo-lo, ou não, há-de ser sempre dos nossos, não saberemos o que fazer com ele, e no entanto continuará a ser dos nossos.

Prossigamos, disse Pedro, o nosso lugar não é ao pé de Judas de Iscariote, Tens razão, disse Tomé, o nosso lugar deveria ser ao lado de Jesus, mas vai vazio. Entraram enfim em Jerusalém e Jesus foi levado ao conselho dos anciãos, príncipes dos sacerdotes e escribas. Estava lá o sumo sacerdote, que 152

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se alegrou ao vê-lo e lhe disse, Eu avisei-te, mas tu não quiseste ouvir-me, agora o teu orgulho não poderá defender-te e as tuas mentiras irão condenar-te, Que mentiras, perguntou Jesus, Uma, a de seres o rei dos Judeus, Eu sou o rei dos Judeus, A outra, a de seres o filho de Deus, Quem te disse que eu digo que sou o filho de Deus, Todos por aí, Não lhes dês ouvidos, eu sou o rei dos Judeus, Então, confessas que não és o filho de Deus, Repito que sou o rei dos Judeus, Tem cuidado, olha que só essa mentira basta para que sejas condenado, O que disse, disse, Muito bem, vou-te mandar ao procurador dos romanos, que está ansioso por conhecer o homem que quer expulsá-lo a ele e tirar estes domínios ao poder de César. Levaram Jesus dali os soldados ao palácio de Pilatos e como já tinha corrido a notícia de que aquele que dizia ser rei dos Judeus, o que espancara os cambistas e deitara fogo às tendas, havia sido preso, acorriam as pessoas a ver que cara fazia um rei quando o levavam pelas ruas à vista de toda a gente, de mãos atadas como um criminoso comum, sendo indiferente, para o caso, se era rei dos autênticos ou dos que presumiam de o ser. E, como sempre acontece, porque o mundo não é todo igual, havia gente que tinha pena, outra que não tinha, uns que diziam, Deixem-no ir, que é doido, outros, pelo contrário, achavam que punir um crime é dar um exemplo e que, se aqueles são muitos, estes não devem ser menos. Pelo meio da multidão, com ela confundidos, andavam meio perdidos os discípulos, e também as mulheres que com eles tinham vindo, estas conheciam-se logo pelas lágrimas, só uma delas é que não chorava, era Maria de Magdala, porque o choro se lhe estava queimando dentro. Não era grande a distância entre a casa do sumo sacerdote e o palácio do procurador, mas a Jesus parecia que não acabava de chegar lá nunca, e não por serem insuportáveis a esse ponto as vaias e os apupos da multidão, finalmente decepcionada pela triste figura que ia fazendo aquele rei, mas porque lhe tardava comparecer ao encontro que por sua vontade aprazara com a morte, não fosse Deus olhar ainda para este lado, e dizer, Que é lá isto, não estás a cumprir o combinado. À