porta do palácio havia soldados de Roma a quem os de Herodes e os guardas do Templo entregaram o preso, ficando estes de fora, à espera do resultado, e entrando com ele apenas uns quantos sacerdotes que tinham autorização. Sentado na sua cadeira de procurador, Pilatos, que este era o nome, viu entrar uma espécie de maltrapilho, barbudo e descalço, de túnica manchada de nódoas antigas e recentes, estas de frutos maduros que os deuses haviam criado para outro fim, não para serem desabafo de rancores e sinal de ignomínia. De pé, diante dele, o prisioneiro aguardava, a cabeça tinha-a direita, mas o olhar perdia-se no espaço, num ponto próximo, porém indefinível, entre os olhos de um e os olhos do outro. Pilatos só conhecia duas espécies de acusados, os que baixavam os olhos e os que deles se serviam como carta de desafio, aos primeiros desprezava-os, aos segundos temia-os sempre um pouco e por isso condenava-os mais depressa. Mas este estava ali e era como se não estivesse, tão seguro de si como se fosse, de facto e de direito, uma real pessoa, a quem, por ser tudo isto um deplorável mal-entendido, não tarda que venham restituir a coroa, o ceptro e o manto. Pilatos acabou por concluir que o mais apropriado ainda seria incluir este preso na segunda espécie deles e julgá-lo em conformidade, posto o que, passou ao interrogatório, Como te chamas, homem, Jesus, filho de José, nasci em Belém de Judeia, mas conhecem-me como Jesus de Nazaré porque em Nazaré de Galileia vivi, Teu pai, quem era, Já to disse, o seu nome era José, Que ofício tinha, Carpinteiro, Explica-me então como saiu de um José carpinteiro um Jesus rei, Se um rei pode fazer filhos carpinteiros, um carpinteiro deve poder fazer filhos reis. Nesta altura, interveio um sacerdote dos principais, dizendo, Lembro-te, ó Pilatos, que este homem também tem afirmado que é filho de Deus, Não é verdade, apenas digo que sou o filho do Homem, respondeu Jesus, e o sacerdote, Pilatos, não te deixes enganar, na nossa religião tanto faz dizer filho do Homem como filho de Deus. Pilatos fez um gesto indiferente com a mão, Se ele andasse por aí a apregoar que era filho de Júpiter, o caso, tendo em conta que outros houve antes, interessar-me-ia, mas que ele seja, ou não seja, filho do vosso deus, é questão sem importância, Julga-o então por se dizer rei dos Judeus, que isso é o bastante para nós, Falta saber se o será também para mim, respondeu Pilatos, de mau modo. Jesus esperava tranquilamente o fim do diálogo e o recomeço do interrogatório. Que dizes tu que és, perguntou o procurador, Digo o que sou, o rei dos Judeus, E que é que pretende o rei dos Judeus que tu dizes ser, Tudo o que é próprio de um rei, Por exemplo, Governar o seu povo e protegê-lo, Protegê-lo de quê, De tudo quanto esteja contra ele, Protegê-lo de quem, De todos quantos contra ele estejam, Se bem compreendo, protegê-lo-ias de Roma, Compreendeste bem, E para o protegeres atacarias os romanos, Não há outra maneira, E expulsar-nos-ias destas terras, Uma coisa leva à outra, evidentemente, 153
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
Portanto, és inimigo de César, Sou o rei dos Judeus, Confessa que és inimigo de César, Sou o rei dos Judeus, e a minha boca não se abrirá para dizer outra palavra. Exultante, o sacerdote levantou as mãos ao céu, Vês tu, ó Pilatos, ele confessa, e tu não podes deixar ir-se com a vida salva quem, diante de testemunhas, se declarou contra ti e contra César. Pilatos suspirou, disse para o sacerdote, Cala-te, e, tornando a Jesus, perguntou, Que mais tens para dizer, Nada, respondeu Jesus, Obrigas-me a condenar-te, Faz o teu dever, Queres escolher a tua morte, Já escolhi, Qual, A cruz, Morrerás na cruz.
Os olhos de Jesus, enfim, procuraram e fixaram os olhos de Pilatos, Posso pedir-te um favor, perguntou, Se não for contra a sentença que ouviste, Peço-te que mandes pôr por cima da minha cabeça um letreiro em que fique dito, para que me conheçam, quem sou e o que sou, Nada mais, Nada mais. Pilatos fez sinal a um secretário, que lhe trouxe o material de escrita, e, por sua própria mão, escreveu Jesus de Nazaré Rei dos Judeus. O sacerdote, que estivera entregue ao seu contentamento, deu-se conta do que sucedia e protestou, Não podes escrever Rei dos Judeus, mas sim Que Se Dizia Rei dos Judeus, ora Pilatos estava enfadado consigo mesmo, parecia-lhe que deveria ter mandado o homem à sua vida, pois até o mais desconfiado dos juízes seria capaz de ver que nenhum mal podia advir a César de um inimigo como este, e foi por tudo isto que respondeu secamente, Não me maces, o que escrevi, escrevi. Fez sinal aos soldados para tirarem dali o condenado, e mandou vir água para lavar as mãos, como era seu costume depois dos julgamentos. Levaram dali Jesus para uma altura a que chamavam Gólgota, e, como já lhe iam fraquejando as pernas sob o peso do patíbulo, apesar da sua robusta compleição, mandou o centurião comandante que um homem que ia de passagem e parara um momento para olhar o desfile tomasse conta da carga. De apupos e vaias já se deu antes notícia, como da multidão que os lançava. Também da rara piedade. Quanto aos discípulos, esses andam por aí, agora mesmo uma mulher acabou de interpelar Pedro, Tu não eras dos que estavam com ele, e Pedro respondeu, Eu, não, e tendo dito escondeu-se atrás de todos, mas ali tornou a encontrar a mesma mulher e outra vez lhe disse, Eu, não, e porque não há duas sem três, sendo a de três a conta que Deus fez, ainda Pedro foi terceira vez perguntado e terceira vez respondeu, Eu, não. As mulheres sobem ao lado de Jesus, umas tantas aqui, umas tantas ali, e Maria de Magdala é a que mais perto vai, mas não pode aproximar-se porque não a deixam os soldados, como a todos e todas não deixarão passar nas proximidades do local onde estão levantadas três cruzes, duas ocupadas já por dois homens que berram e gritam e choram, e a terceira, ao meio, esperando o seu homem, direita e vertical como uma coluna sustentando o céu. Disseram os soldados a Jesus que se deitasse, e ele deitou-se, puseram-lhe os braços abertos sobre o patíbulo, e quando o primeiro cravo, sob a bruta pancada do martelo, lhe perfurou o pulso pelo intervalo entre os dois ossos, o tempo fugiu para trás numa vertigem instantânea, e Jesus sentiu a dor como seu pai a sentiu, viu-se a si mesmo como o tinha visto a ele, crucificado em Séforis, depois o outro pulso, e logo a primeira dilaceração das carnes repuxadas quando o patíbulo começou a ser içado aos sacões para o alto da cruz, todo o seu peso suspenso dos frágeis ossos, e foi como um alívio quando lhe empurraram as pernas para cima e um terceiro cravo lhe atravessou os calcanhares, agora não há mais nada a fazer, é só esperar a morte. Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.