José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
evidentemente, duma questão académica, se tal palavra é adequada ao tempo e ao lugar, porquanto só aos recenseadores, instruídos nas subtilezas processuais da lei romana, caberia decidir sobre casos tão altamente duvidosos, como este de apresentar-se uma mulher de barriga cheia ao recenseamento, Vimos inscrever-nos, e não ser possível averiguar, in loco, se traz dentro varão ou fêmea, isto sem falar da não desdenhável probabilidade duma ninhada de gémeos do mesmo ou de ambos os sexos.
Como perfeito judeu que se prezava de ser, tanto na teoria como na prática, jamais o carpinteiro pensaria em responder, usando da simples lógica ocidental, que não é àquele que tem de suportar a lei que competirá suprir as falhas que nela forem encontradas, e que se Roma não foi capaz de prever estas e outras hipóteses, então é porque está mal servida de legisladores e hermeneutas. Colocado, portanto, perante a difícil questão, José demorou-se a pensar, buscando na sua cabeça o modo mais subtil de dar-lhe resposta, uma resposta que, demonstrando à assembleia reunida à volta do lume os seus dotes de argumentador, fosse, ao mesmo tempo, formalmente brilhante. Finda a aturada reflexão, e levantando devagar os olhos que, por todo o tempo dela, mantivera fitos nas ondulantes chamas da fogueira, disse o carpinteiro, Se, chegado o último dia do recenseamento, o meu filho não for ainda nascido, será porque o Senhor não quer que os romanos saibam dele e o ponham nas suas listas. Disse Simeão, Forte presunção a tua, que assim te arrogas a ciência do que o Senhor quer ou não quer. Disse José, Deus conhece todos os meus caminhos e conta todos os meus passos, e estas palavras do carpinteiro, que podemos encontrar no Livro de Job, significavam, no contexto da discussão, que ali, diante dos presentes e sem exclusão dos ausentes, José reconhecia e protestava a sua obediência ao Senhor, e humildade, sentimentos, qualquer deles, contrários à pretensão diabólica, insinuada por Simeão, de aspirar a devassar os quereres enigmáticos de Deus. Assim o devia ter entendido o ancião, pois deixou-se ficar calado e à espera, do que se aproveitou José para voltar à carga, O dia do nascimento e o dia da morte de cada homem estão selados e sob a guarda dos anjos desde o princípio do mundo, e é o Senhor, quando lhe apraz, que quebra primeiro um e depois o outro, muitas vezes ao mesmo tempo, com a sua mão direita e a sua mão esquerda, e há casos em que demora tanto a partir o selo da morte que chega a parecer que se esqueceu desse vivente. Fez uma pausa, hesitou um pouco, mas depois rematou, sorrindo com malícia, Queira Deus que esta conversa o não faça lembrar-se de ti.
Riram-se os circunstantes, mas por trás da barba, porquanto era manifesto que o carpinteiro não soubera guardar, inteiro, o respeito que a um veterano se deve, mesmo quando a inteligência e a sensatez, por efeito da idade, já não abundem nos seus juízos. O velho Simeão fez um gesto de cólera, dando um repelão à túnica, e respondeu, Porventura terá Deus quebrado o selo do teu nascimento antes do tempo e ainda não devesses estar no mundo, se de maneira tão impertinente e presumida te comportas com os anciãos, que mais viveram e que em todas as coisas sabem mais do que tu. Disse José, Ó Simeão, perguntaste-me como se deveria proceder se o meu filho não tivesse nascido até ao último dia do recenseamento, e a resposta à pergunta não podia eu dar-ta porque não conheço a lei dos romanos, como tu, creio, também não a conheces, Não conheço, Então disse-te, Sei o que disseste, não te canses a repetir-mo, Foste tu quem começou por falar-me com palavras impróprias quando me perguntaste quem me julgava eu para pretender conhecer as vontades de Deus antes de elas se manifestarem, se eu depois te ofendi peço-te que me perdoes, mas a primeira ofensa veio de ti, lembra-te de que, sendo ancião, e por isso meu mestre, não podes ser tu a dar o exemplo da ofensa.
Ao redor da fogueira houve um discreto murmúrio de aprovação, o carpinteiro José, claramente, levava o vencimento do debate, a ver agora como se sai Simeão, que resposta lhe dará. E eis como o fez, sem espírito nem imaginação, Por dever de respeito, não tinhas mais que responder à minha pergunta, e José disse, Se eu te respondesse como querias, logo teria ficado a descoberto a vanidade da questão, portanto terás de admitir, por muito que te custe, que foi sinal de maior respeito o que fiz, facilitando-te, mas tu não o quiseste entender, a oportunidade de discorreres sobre um tema que a todos interessaria, a saber, se quereria ou poderia o Senhor, alguma vez, esconder o seu povo dos olhos do inimigo, Agora estás falando do povo de Deus como se fosse o teu filho não nascido, Não ponhas na minha boca, ó Simeão, palavras que eu não disse e não direi, escuta o que é para ser compreendido duma maneira e o que é para ser compreendido doutra. A esta tirada já Simeão não respondeu, levantou-se da roda e foi sentar-se no canto mais escuro, acompanhado dos outros homens da família, obrigados pela solidariedade do sangue, mas no íntimo despeitados pela tristíssima figura que o patriarca fizera na justa verbal. Ali, entre a companhia, cobrindo o silêncio que se sucedeu aos 18