Выбрать главу

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

rumores e murmúrios de quem se está acomodando para o repouso, tornou-se outra vez perceptível o surdo marulhar das conversas no caravançarai, cortadas por alguma exclamação mais sonora, pelos resfolgos e fungadelas dos animais, e, a espaços, pelo bramido áspero, grotesco, de um camelo picado do cio. Foi então que, todos juntos, concertando o ritmo da recitação, os viajantes de Nazaré, já sem cuidar da recente discórdia, entoaram em voz baixa, mas ruidosamente sendo tantos, a última e a mais longa de quantas bênçãos ao Senhor vão encaminhadas no decurso do dia, e que assim reza, Louvado sejas tu, Deus nosso, rei do universo, que fazes cair as ataduras do sono sobre os meus olhos e o torpor sobre as minhas pálpebras, e que às minhas pupilas não retiras a luz. Seja da tua vontade, Senhor meu Deus, que agora me deite em paz e amanhã possa acordar para uma vida feliz e pacífica, consente que me aplique no cumprimento dos teus preceitos e não me deixes acostumar a acto algum de transgressão. Não permitas que caia em poder do pecado, da tentação, nem da vergonha. Faz com que em mim tenham vencimento as boas inclinações, não deixes que tenham poder sobre mim as más.

Livra-me das ruins inclinações e das doenças mortais, e que eu não seja perturbado por sonhos maus e más cogitações, não seja que eu sonhe com a Morte. Poucos minutos eram passados e já os mais justos, se não os mais cansados, dormiam, alguns sem nenhuma espiritualidade roncando, e os outros não tiveram de esperar muito, ali estavam, sem outro agasalho, na maior parte, que as próprias túnicas, só os velhos e os novinhos, frágeis uns e outros, gozavam do conforto duma dobra de lençol grosso ou duma escassa manta. Faltando-lhe o alimento, a fogueira esmorecia, apenas umas desmaiadas chamas dançavam ainda sobre a última acha recolhida no caminho para este útil fim.

Debaixo do arco que abrigava o pessoal de Nazaré, todos dormiam. Todos, à excepção de Maria. Não podendo deitar-se por causa da desconformidade do ventre, que à vista mais parecia conter um gigante, reclinava-se nuns alforges da equipagem, buscando amparo para os martirizados rins. Como os outros, escutara o debate entre José e o velho Simeão, e alegrara-se com a vitória do marido, como é obrigação de toda a mulher, mesmo em se tratando de pelejas incruentas, como esta foi. Mas já se lhe varrera da lembrança o que tinham discutido, ou a memória do debate se submergira nas sensações que por dentro do seu corpo iam e vinham, iguais às marés do oceano que nunca vira, mas de que alguma vez ouvira falar, fluindo e refluindo, entre o ansioso choque das ondas que eram o filho movendo-se, porém de um modo singular, como se, estando dentro dela, a quisesse levantar, em peso, nos seus ombros. Só os olhos de Maria estavam abertos, brilhando na penumbra, e continuaram a brilhar mesmo depois de o lume se apagar de todo, mas isto não é nenhuma admiração, sucede a todas as mães desde o princípio do mundo, contudo ficámos a sabê-lo definitivamente quando à mulher do carpinteiro José apareceu um anjo, que o era, segundo declaração do próprio, apesar de vir em figura de mendigo itinerante. Também no caravançarai cantavam galos pelas frescas madrugadas, mas os viajantes, mercadores, almocreves, condutores de camelos, urgidos pelas obrigações, mal esperaram o primeiro canto, e muito cedo principiaram os preparativos da jornada, carregando as bestas com os teres e haveres próprios ou as mercadorias do negócio, e por este modo alevantando no campo um arruído que deixava a perder de vista, ou de ouvidos, para usar a palavra exacta, a algazarra da véspera. Quando estes se tiverem ido, o caravançarai passará algumas horas assaz tranquilas, como um lagarto pardo esparramado ao sol, pois vão ficar ali somente os hóspedes que decidiram descansar um dia inteiro, até que, aproximando-se o fim da tarde, comece a chegar o novo turno de caminheiros, uns mais sujos do que outros, mas todos fatigados, e contudo mantendo intactas e poderosas as cordas vocais, ainda mal vêm entrando e já estão gritando como possessos de mil diabos, salvo seja. Que a companhia de Nazaré vá daqui engrossada, não deve surpreender a ninguém, juntaram-se-lhe mais umas dez pessoas, muito enganado está quem haja imaginado esta terra um deserto, mormente em época tão festival, de recenseamento e Páscoa, consoante foi já explicado. Entendera José, de si para consigo, que seria de seu dever fazer as pazes com o velho Simeão, não por achar que com a noite os seus argumentos tinham perdido força e razão, mas porque havia sido instruído no respeito dos mais velhos e em particular dos anciãos, que, coitados, tendo vivido uma longa vida, que agora se paga roubando-lhes o espírito e o entendimento, não poucas vezes se vêem desconsiderados pela malta nova. Aproximou-se pois dele e disse, em tom de comedimento, Venho pedir-te desculpa, se te pareci insolente e enfatuado ontem à noite, nunca foi minha intenção faltar-te ao respeito, mas sabes como são as coisas, palavra traz palavra, as boas puxam as más, e acabamos sempre por dizer mais do que queriamos. Simeão ouviu, ouviu, de cabeça baixa, e finalmente respondeu, Estás desculpado. Em 19

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

troca do seu generoso movimento, era natural que José esperasse uma resposta mais benévola do teimoso velho, e, ainda com a esperança de ouvir palavras que cria merecer, caminhou ao lado dele durante um bom bocado de tempo e de caminho. Mas Simeão, com os olhos postos no pó da estrada, fazia de conta que não dava pela sua presença, até que o carpinteiro, justamente enfadado, esboçou o gesto de quem vai afastar-se. Foi então que o velho, como se subitamente o tivesse abandonado o pensamento fixo que o ocupava, deu um passo rápido e deitou-lhe a mão à túnica, Espera, disse.

Surpreendido, José virou-se para ele. Simeão parara e repetia, Espera. Foram passando os outros homens e agora estavam estes dois no meio do caminho, como em terra-de-ninguém, entre o grupo dos varões que se ia afastando e o bando das mulheres, lá atrás, cada vez mais perto. Por cima das cabeças podia-se ver o vulto de Maria, balouçando-se ao compasso da andadura do burro. Tinham deixado o vale de Isreel. A estrada, ladeando penedias, vencia custosamente a primeira encosta, depois do que se embrenharia nas montanhas de Samaria, pelo lado do poente, ao longo dos espinhaços áridos por trás dos quais, descaindo para o Jordão e arrastando na direcção do sul a sua rasoira ardente, o deserto de Judeia queimava e requeimava a antiquíssima cicatriz duma terra que, havendo sido prometida a uns tantos, nunca viria a saber a quem entregar-se. Espera, disse Simeão, e o carpinteiro obedecera, agora inquieto, temeroso sem saber de quê. As mulheres já vinham perto.

Então o velho recomeçou a andar, agarrando-se à túnica de José, como se as forças lhe estivessem fugindo, e disse, Ontem à noite, depois de me retirar para dormir, tive uma visão, Uma visão, Sim, mas não uma visão de ver coisas, como acontece, foi antes como se pudesse ver o que está por trás das palavras, aquelas que disseste, que se o teu filho ainda não tivesse nascido quando chegar o último dia do recenseamento, seria por não querer o Senhor que os romanos saibam dele e o ponham nas suas listas, Sim, eu disse isso, mas tu que viste, Não vi coisas, foi como se, de repente, tivesse a certeza de que seria melhor que os romanos não soubessem da existência do teu filho, que dele ninguém viesse a saber nunca, e que, se tem mesmo de vir a este mundo, ao menos que nele viva sem pena nem glória, como aqueles homens que além vão e essas mulheres que aí vêm, ignorado como qualquer de nós até à hora da sua morte e depois dela, Sendo o pai este nada que sou, um carpinteiro de Nazaré, esse viver que lhe desejas é o que o meu filho pode ter de mais certo, Não és o único a dispor da vida do teu filho, Sim, todo o poder está no Senhor Deus, ele é o que sabe, Assim foi sempre e assim o cremos, Mas fala-me do meu filho, que soubeste do meu filho, Nada, só aquelas mesmas tuas palavras que, num relâmpago, me pareceram conter outro sentido, como se olhando pela primeira vez um ovo tivesse a percepção do pinto que leva dentro, Deus quis o que fez e fez o que quis, é nas suas mãos que está o meu filho, eu nada posso, Em verdade, assim é, mas estes são ainda os dias em que Deus partilha com a mulher a posse da criança, Que depois, se for varão, será minha e de Deus, Ou só de Deus, Todos o somos, Nem todos, alguns há que estão divididos entre Deus e o Demónio, Como sabê-lo, Se a lei não tivesse feito calar as mulheres para todo o sempre, talvez elas, porque inventaram aquele primeiro pecado de que todos os mais nasceram, soubessem dizer-nos o que nos falta saber, Quê, Que partes divina e demoníaca as compõem, que espécie de humanidade transportam dentro de si, Não te compreendo, pareceu-me que estavas falando do meu filho, Não falava do teu filho, falava das mulheres e de como geram os seres que somos, se não será por vontade delas, se é que o sabem, que cada um de nós é este pouco e este muito, esta bondade e esta maldade, esta paz e esta guerra, revolta e mansidão. José olhou para trás, vinha Maria no seu burro, com um rapazinho posto diante dela, montando escarranchado, à homem, e por um instante imaginou que era já o seu filho, e a Maria viu-a como se fosse a primeira vez, avançando na dianteira da tropa feminina entretanto engrossada.