Ressoavam ainda nos seus ouvidos as estranhas palavras de Simeão, porém, custava-lhe a aceitar que uma mulher pudesse ter tanta importância assim, pelo menos esta sua nunca lhe havia dado sinal, medíocre que fosse, de valer mais do que o comum de todas. Ora, foi nesta altura, mas já então ia olhando em frente, que lhe veio à lembrança o caso do mendigo e da terra luminosa. Tremeu da cabeça aos pés, arrepiaram-se-lhe cabelo e carnes, e ainda mais quando, ao voltar-se outra vez para Maria, viu, com os seus olhos claramente visto, caminhando ao lado dela, um homem alto, tão alto que os seus ombros se viam por cima das cabeças das mulheres, e era, por estes sinais sim, o mendigo que nunca pudera ver. Tornou a olhar, e ele lá estava, presença insólita, incongruência total, sem nenhuma razão humana para encontrar-se ali, varão entre mulheres. ia José pedir a Simeão que olhasse também ele para trás, que lhe confirmasse estes impossíveis, mas o velho adiantara-se, dissera 20
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
o que tinha que dizer e agora juntava-se aos homens da sua família, para retomar o simples papel do mais idoso, que é sempre o que menos tempo dura. Então, o carpinteiro, sem outra testemunha, tornou a olhar na direcção da mulher. O homem já lá não estava. Tinham atravessado, a caminho do sul, toda a região de Samaria, e fizeram-no em marchas forçadas, com um olho atento à estrada e o outro, inquieto, perscrutando as cercanias, temerosos dos sentimentos de hostilidade, porém mais exacto seria dizer aversão, dos habitantes daquelas terras, descendentes em malfeitorias e herdeiros em heresias dos antigos colonos assírios que a estas paragens vieram em tempo de Salmanasar, o rei de Nínive, depois da expulsão e dispersão das Doze Tribus, e que, tendo algo de judeus, mas muito mais de pagãos, apenas reconhecem como lei sagrada os Cinco Livros de Moisés e protestam que o lugar escolhido por Deus para o seu templo não foi Jerusalém, mas sim, imagine-se, o monte Gerizim, que está nos seus territórios. Andaram depressa os de Galileia, mas ainda assim tiveram de passar duas noites em campo inimigo, ao relento, com vigias e roldas, não fosse dar-se o caso de os malvados atacarem pela calada, capazes como são das piores acções, chegando ao extremo de recusarem uma sede de água a quem, de puro tronco hebreu, por necessidade dela se estivesse finando, não valendo referir alguma excepção conhecida, por não ser mais do que isso, uma excepção. E a tal ponto foi a ansiedade dos viajantes durante o trajecto que, contrariando o costume, os homens se dividiram em dois grupos, à frente e atrás das mulheres e crianças, para guardá-las de insultos ou coisa pior. Afinal, estariam os de Samaria de humor pacífico nestes dias, o certo é que, além dos encontrados no caminho, também de viagem, que satisfaziam o seu rancor lançando aos galileus olhares de escárnio e algumas palavras malsonantes, nenhuma quadrilha formal e organizada se precipitou das encostas ao assalto ou apedrejou de emboscada o assustado e inerme destacamento. Um pouco antes de chegarem a Ramalá, onde os crentes mais fervorosos ou de mais apurado olfacto juravam sentir já o santíssimo odor de Jerusalém, largaram o grupo o velho Simeão e os seus, que, como foi dito antes, em uma aldeia destes sítios vêm recensear-se. Ali, no meio do caminho, com grande profusão de bênçãos, fizeram os viajantes as suas despedidas, as mães de família encheram Maria de mil e uma recomendações filhas da experiência, e lá se foram todos, uns descendo ao vale onde pronto poderão repousar das fadigas de quatro dias a andar, outros para Ramalá, em cujo caravançarai passarão ainda a noite que vem chegando. E em Jerusalém, finalmente, se hão-de separar os que restam do grupo que partiu de Nazaré, a maior parte para Bercheva, ainda com dois dias de viagem pela frente, e o carpinteiro e sua mulher que ficarão logo ali, em Belém. No meio da confusão dos abraços e adeuses, José chamou de parte Simeão e, com muita deferência, quis saber se naquele meio-tempo lhe ocorrera alguma lembrança mais da visão, Que não foi visão, já te disse, Fosse o que fosse, a mim o que me interessa é saber que destino vai ter o meu filho, Se nem o teu próprio destino podes conhecer, e estás aí, vivo e falando, como queres pretender saber do que ainda nem existência tem, Os olhos do espírito vão mais longe, por isso imaginei que os teus, abertos pelo Senhor às evidências dos eleitos, tivessem conseguido alcançar o que para mim é pura treva, Talvez que do destino do teu filho não venhas a saber nunca, talvez o teu próprio destino esteja para cumprir-se em breve, não perguntes, homem, não queiras saber, vive apenas o teu dia. E, tendo dito estas palavras, Simeão pôs a mão direita sobre a cabeça de José, murmurou uma bênção que ninguém pôde ouvir e foi juntar-se aos seus, que o esperavam. Por um carreiro sinuoso, em fila, começaram a descer para o vale, onde, no baixo da outra encosta, quase confundida com as pedras que do chão rompiam como fatigados ossos, estava a aldeia de Simeão. José não voltaria a ter notícias dele, apenas, mas muito mais tarde, que tinha morrido antes de recensear-se. Depois das duas noites passadas à luz das estrelas e ao frio do descampado, já que, por medo de um ataque de surpresa, nem fogueiras tinham acendido, soube bem aos de Nazaré poderem acolher-se uma vez mais ao resguardo das paredes e arcadas de um caravançarai. As mulheres foram ajudar Maria a descer-se do burro, dizendo, piedosas, Mulher, que para breve estás, e a pobre murmurava que sim, devia de estar, como disso era sinal, a todos evidente, o repentino, ou assim parecia, crescimento da barriga. Instalaram-na o melhor que puderam num canto recolhido e foram tratar da ceia que já tardava, da qual vieram a comer todos. Nesta noite não houve conversas, nem recitações, nem histórias contadas à volta da fogueira, como se a proximidade de Jerusalém obrigasse ao silêncio, cada um olhando para dentro de si e perguntando, Quem és tu, que comigo te pareces, mas a quem não sei reconhecer, e não é que o dissessem de facto, as pessoas não se põem assim a falar sozinhas, sem mais nem menos, ou sequer o pensassem conscientemente, porém o certo 21