José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
é que um silêncio como este, quando fixamente olhamos as chamas duma fogueira e calamos, se quisermos traduzi-lo em palavras, não há outras, são aquelas, e dizem tudo. No lugar onde estava sentado, José via Maria de perfil contra o resplendor do lume, o clarão avermelhado; reflectido, iluminava-lhe numa meia-tinta a face deste lado, desenhando-lhe o perfil em luz e contraluz, e ele achou, surpreendido por o estar pensando, que Maria era uma bonita mulher, se já se lhe podia dar esse nome, com aquela cara de menina, sem dúvida tem o corpo agora deformado, mas a memória traz-lhe uma imagem diferente, ágil e graciosa, depressa voltará ao que era, depois de nascer a criança. Pensava José isto, e num repente inesperado foi como se todos os meses passados, de forçada castidade, se tivessem rebelado, despertando a urgência de um desejo que se lhe ia difundindo por todo o sangue, em ondas sucessivas irradiando vagos apetites carnais que principiavam por aturdi-lo, para depois refluírem, mais fortes, escandecidos pela imaginação, ao ponto de partida. Ouviu que Maria soltara um gemido, mas não se aproximou dela. Lembrara-se, e a recordação, como uma chapada de água fria, arrefeceu de golpe as sensações voluptuosas que estivera experimentando, lembrara-se do homem que dois dias antes vira, num rápido instante, caminhar ao lado da mulher, esse mendigo que os perseguia desde o anúncio da gravidez de Maria, pois agora José não tinha dúvidas de que, mesmo não tendo voltado a aparecer até ao dia em que ele próprio pudera vê-lo, o misterioso personagem sempre estivera, ao longo dos nove meses de gestação, nos pensamentos de Maria. Não se atrevera a perguntar à mulher que homem era aquele e se sabia para onde ele fora, que tão depressa se sumira, não queria ouvir a resposta que temia, uma estupefacta pergunta, Homem, que homem, e, se teimasse, o mais certo seria chamar Maria a testemunhar as outras mulheres, Vocês viram algum homem, vinha algum homem no grupo das mulheres, e elas diriam que não e abanariam a cabeça com algum ar de escândalo, e talvez uma delas, mais solta de língua, dissesse, Ainda está para nascer o homem que, sem ser por precisões do corpo, se chegue ao lado das mulheres e com elas fique. O que José não poderia adivinhar é que não haveria malícia alguma na surpresa de Maria, pois ela realmente não vira o mendigo, tivesse ele sido homem de carne e osso ou aparição. Mas, como pode isso ser verdade, se ele estava ali, ao teu lado, se o vi com estes olhos, perguntaria José, e Maria que responderia, firme na sua razão, Em tudo, assim me disseram que está escrito na lei, a mulher deverá ao marido respeito e obediência, portanto não torno a dizer que esse homem não ia ao meu lado, sustentando tu o contrário, afirmo apenas que não o vi, Era o mendigo, E como podes sabê-lo, se não chegaste a vê-lo no dia em que apareceu, Tinha de ser ele, Seria antes alguém que ia no seu caminho, e, porque caminhava mais devagar do que nós, passámos-lhe à frente, primeiro os homens, depois as mulheres, por acaso estaria ao meu lado quando olhaste, foi isso e nada mais, Então, confirmas, Não, somente procuro uma explicação que te satisfaça, como é também dever das boas mulheres. Por entre os olhos semicerrados, quase adormecido, José ainda tenta ler uma verdade no rosto de Maria, mas a face dela tornou-se negra como o outro lado da lua, o perfil apenas uma linha, recortado contra a claridade já esmorecida das últimas brasas. José deixou pender a cabeça como se definitivamente tivesse renunciado a compreender, levando consigo, para dentro do sono, uma ideia em tudo absurda, a de que aquele homem teria sido uma imagem do seu filho feito homem, que viera do futuro para dizer-lhe, Assim eu serei um dia, mas tu não chegarás a ver-me assim. José dormia, com um sorriso resignado nos lábios, mas triste era como se sentiria se ouvisse Maria dizer-lhe, Que o não queira o Senhor, que de ciência certa sei eu que esse homem não tem onde descansar a cabeça.
Em verdade, em verdade vos digo que muitas coisas neste mundo poderiam saber-se antes de acontecerem outras que delas são fruto, se, um com o outro, fosse costume falarem marido e mulher como marido e mulher. No dia seguinte, manhã cedo, abalaram para Jerusalém muitos dos viajantes que tinham passado a noite no caravançarai, mas os grupos de caminhantes, por casualidade, formaram-se de maneira que José, embora mantendo-se à vista dos conterrâneos que iam para Bercheva, acompanhava desta vez a mulher, seguindo ao lado dela, à estribeira, por assim dizer, precisamente como o mendigo, ou quem quer que fosse, fizera no dia anterior. Mas José, neste momento, não quer pensar na misteriosa personagem. Tem a certeza, íntima e profunda, de que foi beneficiário dum obséquio particular de Deus, que lhe permitiu ver o seu próprio filho ainda antes de ser nascido, não envolto em faixas e cueiros de infantil debilidade, pequeno ser inacabado, fétido e ruidoso, mas homem feito, alto um bom palmo mais do que o seu pai e o comum desta raça. José vai feliz por ocupar o lugar de seu filho, é ao mesmo tempo o pai e o filho, e a tal ponto este sentimento é 22
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forte que subitamente perde sentido aquele que é seu verdadeiro filho, a criança que ali vai, ainda dentro da barriga da mãe, no caminho de Jerusalém. Jerusalém, Jerusalém, gritam os devotos viajantes à vista da cidade, de repente levantada como uma aparição no cimo do morro do outro lado, além do vale, cidade em verdade celeste, centro do mundo, agora despedindo mil centelhas em todas a direcções, sob a luz forte do meio-dia, como uma coroa de cristal, mas que sabemos se tornará em ouro puro quando a luz do poente lhe tocar e será branca de leite sob o luar, Jerusalém, ó Jerusalém. O
Templo aparece como se nesse mesmo momento Deus ali o tivesse pousado, e o súbito sopro que percorre os ares e vem roçar a cara, os cabelos, as roupas dos peregrinos e viajantes é talvez o movimento do ar deslocado pelo gesto divino, que, se olharmos com atenção as nuvens do céu, podemos ver a imensa mão que se retira, os longos dedos sujos de barro, a palma onde estão traçadas todas as linhas de vida e de morte dos homens e de todos os outros seres do universo, mas também, é tempo de que se saiba, a linha da vida e da morte do mesmo Deus. Os viajantes levantam ao ar os braços que tremem de emoção, as bênçãos saltam, irresistíveis, não já em coro, cada qual entregue ao seu arrebatamento próprio, e alguns, por natureza mais sóbrios nestas místicas expressões, quase não se movem, olham o céu e pronunciam as palavras com uma espécie de dureza, como se neste momento lhes fosse consentido falar de igual para igual ao seu Senhor. A estrada descai em rampa, e à medida que os viajantes vão descendo para o vale, antes de abordarem a nova subida que os levará a esta porta da cidade, o Templo parece erguer-se mais e mais, escondendo, por efeito da perspectiva, a execrada Torre Antónia, onde, mesmo a esta distância, se percebem os vultos dos soldados romanos que vigiam do eirado e rápidas fulgurações de armas. Aqui se despedem os de Nazaré, porque Maria vem exausta e não suportaria o trote seco da sua montada na descida, se ela tivesse de acompanhar o passo rápido, quase carreira precipitada, que passou a ser o de toda esta gente à vista dos muros da cidade. Ficaram pois José e Maria sozinhos na estrada, ela procurando recobrar as fugidas forças, ele um tanto impaciente pela demora, agora que estão já tão perto do destino. O sol cai a prumo sobre o silêncio que rodeia os viajantes. De súbito, um gemido surdo, irreprimível, sai da boca de Maria. José inquieta-se, pergunta, São as dores que começam, e ela responde, Sim, mas nesse mesmo instante uma expressão de incredulidade espalha-se-lhe no rosto, como se ela tivesse acabado de encontrar-se com algo inacessível à sua compreensão, é que, em verdade, não fora no seu próprio corpo que ela sentira a dor, sentira-a sim, mas como uma dor efectivamente sentida por outrem, quem, o filho que dentro de si está, como é possível suceder tal coisa, que possa um corpo sentir uma dor que não é sua, ainda por cima sabendo que o não é, e, contudo, uma vez mais, sentindo-a como se a sua própria fosse, ou não exactamente desta maneira e por estas palavras, digamos antes, como um eco que, por qualquer estranha perversão dos fenómenos acústicos, se ouvisse com mais intensidade do que o som que o tinha causado. Cauteloso, mal querendo saber, José perguntou, Continua a doer-te, e ela não sabe como responder-lhe, mentirá se disser que não, mentirá se disser que sim, por isso cala, mas a dor está lá, e sente-a, porém é também como se apenas a estivesse olhando, impotente para acudir, no interior do ventre doem-lhe as dores do seu filho, e ela que não lhe pode valer, tão longe está. Não foi gritada nenhuma ordem, José não usou a chibata, mas o certo é que o burro recomeçou a andar mais espevitado de ânimo, sobe por sua conta a ladeira íngreme que leva a Jerusalém, e vai ligeiro, como quem ouviu dizer que tem a manjedoura cheia à sua espera e finalmente descanso de valer a pena, mas o que ele não sabe é que ainda vai ter de calcorrear um bom pedaço de caminho antes de chegar a Belém, e quando lá se encontrar perceberá que as coisas afinal não são tão simples quanto pareciam, claro está que seria muito bonito poder anunciar, Veni, vidi, vici, proclamou-o assim Júlio César no tempo da sua glória e depois foi o que se viu, às mãos do seu próprio filho veio a morrer, sem mais desculpa este que ser apenas adoptivo. Vem de longe e promete não ter fim a guerra entre pais e filhos, a herança das culpas, a rejeição do sangue, o sacrifício da inocência. Quando já estavam entrando a porta da cidade, Maria não pôde reter um grito de dor, mas este lancinante, como se uma lança a tivesse traspassado. Ouviu-a somente José, tão grande era o ruído que faziam as pessoas, os animais bastante menos, mas tudo junto resultando numa algazarra de mercado que mal deixava perceber o que se dissesse ao lado. José quis ser sensato, Tu não estás em condições de continuar, o melhor será procurarmos pousada aqui, e amanhã irei eu a Belém, ao recenseamento, e direi que estás de parto, vais lá depois se for preciso, que não sei como são as leis dos romanos, talvez seja bastante apresentar-se o chefe de família, sobretudo num caso como este, e Maria respondeu, Já não sinto 23