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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

que são tão brutos como as bestas com que andam, estando eles agravados, na comparação, por terem o divino dom da fala e elas não. Resolve pois José que irá pedir conselho e auxílio aos anciãos da sinagoga, e de si para consigo se surpreende por não haver pensado nisso antes. Agora com o coração mais desanuviado de preocupações, pensou que estaria bem perguntar a Maria como ia ela de dores, porém não pronunciou a palavra, lembremo-nos de que tudo isto é sujo e impuro, desde a fecundação ao nascimento, aquele terrífico sexo da mulher, vórtice e abismo, sede de todos os males do mundo, o interior labiríntico, o sangue e as humidades, os corrimentos, o rebentar das águas, as repugnantes secundinas, meu Deus, por que quiseste que os teus filhos dilectos, os homens, nascessem da imundície, quando bem melhor fora, para ti e para nós, que os tivesses feito de luz e transparência, ontem, hoje e amanhã, o primeiro, o do meio e o último, e assim igual para todos, sem diferença entre nobres e plebeus, entre reis e carpinteiros, apenas colocarias um sinal assustador naqueles que, crescendo, estivessem destinados a tornar-se, sem remédio, imundos. Retido por tantos escrúpulos, José acabou por fazer a pergunta num tom de meia indiferença, como se, estando ocupado com matérias superiores, condescendesse em informar-se de servidões miúdas; Como te sentes, disse, e era justamente a ocasião de ouvir uma resposta nova, pois Maria, momentos antes, tinha principiado a notar diferença no teor das dores que estivera experimentando, excelente palavra esta, mas posta ao invés, porque com outra exactidão se diria que as dores é que a estavam, finalmente, a experimentar a ela. Nesta altura já levavam mais de uma hora de caminho, Belém não podia estar longe. Ora, sem que pudesse perceber-se porquê, porém as coisas não levam sempre, conjuntamente, a sua própria explicação, a estrada estivera deserta desde que os dois tinham saído de Jerusalém, caso digno de estranheza porque, estando Belém tão perto da cidade, o mais natural seria haver aqui um contínuo corrupio de gente e animais. Desde o sítio onde a estrada, poucos estádios depois de Jerusalém, se bifurcava, um ramo para Bercheva, este para Belém, era como se o mundo se tivesse recolhido, dobrado sobre si mesmo, pudesse o mundo ser representado por uma pessoa e diríamos que cobrira os olhos com o manto, escutando apenas os passos dos viajantes, tal com escutamos o canto de pássaros que não podemos ver, ocultos entre os ramos, eles, mas nós também, porque assim nos estarão imaginando as aves escondidas na folhagem. José, Maria e o burro tinham vindo a atravessar o deserto, pois o deserto não é aquilo que vulgarmente se pensa, deserto é tudo quanto esteja ausente dos homens, ainda que não devamos esquecer que não é raro encontrar desertos e securas mortais em meio de multidões. À direita está o túmulo de Raquel, a esposa por quem Jacob teve de esperar catorze anos, aos sete anos de serviço cumprido lhe deram Lia e só depois de outros tantos a mulher amada, que a Belém viria morrer dando à luz a criança a quem Jacob daria o nome de Benjamim, que quer dizer filho da minha mão direita, mas a quem ela, antes de morrer, chamou, com muita razão, Benoni, que significa filho da minha desgraça, permita Deus que isto não seja um agoiro. Agora já se distinguem as primeiras casas de Belém, cor de terra como as de Nazaré, mas estas parecem amassadas de amarelo e cinzento, lívidas sob o sol. Maria vai quase desmaiada, o seu corpo desequilibra-se a cada instante em cima do seirão, José tem de ampará-la, e ela, para poder segurar-se melhor, passa um braço por cima do ombro dele, pena que estejamos no deserto e não esteja aqui alguém para ver tão bonita imagem, tão fora do comum. E assim vão entrando em Belém. Perguntou José, apesar de tudo, onde estava o caravançarai porque havia pensado que talvez pudessem descansar ali o resto do dia, e a noite, uma vez que, apesar das dores de que Maria continuava a queixar-se, não parecia que a criança estivesse para nascer já. Mas o caravançarai, do outro lado da aldeia, sujo e ruidoso, misto de bazar e estrebaria como todos, embora, por ser ainda cedo, não estivesse cheio, não tinha um sítio recatado livre, e lá para o fim do dia muito pior seria ainda, com a chegada dos cameleiros e almocreves. Tornaram atrás os viajantes, José deixou Maria num pequeno largo entre muros de casas, à sombra duma figueira, e foi-se à procura dos anciãos, como primeiro tinha pensado.

Quem estava na sinagoga, um simples zelador, não pôde fazer mais do que chamar um garoto dos que andavam por ali a brincar e mandar-lhe que guiasse o forasteiro a um dos anciãos, que, assim se esperava, providenciaria. Quis a sorte, protectora de inocentes quando deles se lembra, que José, nesta nova diligência, tivesse de passar pelo largo onde deixara a mulher, foi o que valeu a Maria, a maléfica sombra da figueira quase que a estava matando, falta de atenção imperdoável de um e de outro, numa terra em que abundam estas árvores e que tem obrigação de saber o que de mau e de bom se pode esperar delas. Dali foram todos como condenados à procura do ancião, que afinal estava no 25

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campo e não voltaria tão cedo, esta foi a resposta que deram a José. Então o carpinteiro encheu-se de coragem e em voz alta perguntou se naquela casa, ou noutra, Se me estão a ouvir, alguém quereria, em nome do Deus que tudo vê, dar guarida a sua mulher, que está para ter um filho, decerto haverá por aí um canto recolhido, que esteiras trazia-as ele, E também onde é que poderei encontrar nesta aldeia uma aparadeira para ajudar ao parto, o pobre José dizia envergonhado estas coisas enormes e íntimas, ainda com mais vergonha por sentir-se corar ao dizê-las. A escrava que o atendia ao portal foi dentro com a mensagem, o pedido e o protesto, demorou-se, e voltou com a resposta de que não poderiam ficar ali, procurassem outra casa, mas não a tivessem por certa, e que a sua senhora mandara dizer que o melhor para eles ainda seria recolherem-se a uma das muitas covas que havia naquelas encostas, E a aparadeira, perguntou José, ao que a escrava respondeu que, autorizando os seus amos e aceitando-a ele, ela mesma poderia ajudar, pois não lhe haviam faltado na casa, em tantos anos, ocasiões de ver e aprender. Em verdade, muito duros são estes tempos, e agora se confirmou, que vindo bater à nossa porta uma mulher que está para ter um filho, lhe recusámos o alpendre do pátio e a mandámos parir numa cova, como as ursas e as lobas. Deu-nos, porém, a consciência um rebate, e, levantando-nos donde estávamos, fomos ver ao portal quem eram esses que buscavam abrigo por razão tão urgente e fora do comum, e quando demos com a dolorosa expressão da infeliz criatura apiedou-se o nosso coração de mulher e com medidas palavras justificámos a recusa por termos a casa cheia, São tantos os filhos e as filhas nesta casa, os netos e as netas, os genros e as noras, por isso não podíeis caber cá, mas a escrava vos levará a uma gruta que nos pertence e que tem servido de estábulo, aí ficareis cómodos, não há lá animais agora, e, tendo isto dito, e escutado os agradecimentos da pobre gente, nos retirámos para o resguardo do nosso lar, experimentando nas profundezas da alma o conforto inefável que dá a paz da consciência. Com todo este ir e vir, este andar e estar parado, este pedir e perguntar, foi desmaiando o forte azul do céu, e o sol não tarda que se esconda por trás daquele monte. A escrava Zelomi, que esse é o seu nome, vai à frente guiando os passos, e leva um pote com brasas para o lume, uma caçoila de barro para aquecer a água, sal para esfregar o recém-nascido, não vá apanhar alguma infecção. E como de panos vem Maria servida e a faca com que se há-de cortar o cordão umbilical trá-la José no seu alforge, se Zelomi não preferir cortá-lo com os dentes, já a criança pode nascer, afinal um estábulo serve tão bem como uma casa, e só quem nunca teve a felicidade de dormir numa manjedoura ignora que nada há no mundo que se pareça mais com um berço. O burro, pelo menos, não lhe achará diferença, a palha é igual no céu e na terra. Chegaram à cova aí pela hora terça, quando o crepúsculo, suspenso, ainda dourava as colinas, e não foi a demora tanto por causa da distância, mas porque Maria, agora que levava garantida a pousada e pudera, enfim, abandonar-se ao sofrimento, pedia por todos os anjos que a levassem com cuidado, pois cada resvalo dos cascos do asno nas pedras a punha em transes de agonia. Dentro da caverna fazia escuro, a enfraquecida luz exterior detinha-se logo à entrada, porém, em pouco tempo, chegando um punhado de palha às brasas e soprando, com a lenha seca que ali havia, a escrava fez uma fogueira que era como uma aurora. Logo, acendeu a candeia que estava dependurada duma saliência da parede, e, tendo ajudado Maria a deitar-se, foi por água aos poços de Salomão, que ali são perto. Quando voltou, achou José de cabeça perdida, sem saber que fazer, e não devemos censurá-lo, que aos homens não os ensinam a comportar-se utilmente em situações destas, nem eles querem saber, o mais de que hão-de vir a ser capazes é pegar na mão da mulher sofredora e ficar à espera de que tudo se resolva em bem. Maria, porém, está sozinha, o mundo acabaria de assombro se um judeu deste tempo ousasse cometer esse pouco. Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, como foi determinado pelo Senhor Deus quando Eva errou por desobediência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia continua. José já ali não está, nem sequer à entrada da cova.