Fugiu para não ouvir os gritos, mas os gritos vão atrás dele, é como se a própria terra gritasse, a tais extremos que três pastores que andavam por perto com os seus rebanhos de ovelhas foram para José e perguntaram-lhe, Que é isto, que parece que a terra está gritando, e ele respondeu, É a minha mulher que dá à luz além naquela cova, e eles disseram, Não és destes sítios, não te conhecemos, Viemos de 26
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
Nazaré de Galileia ao recenseamento, na hora que chegámos cresceram-lhe as dores, e agora está nascendo. O crepúsculo mal deixava ver os rostos dos quatro homens, em pouco tempo todos os traços se iriam apagar, mas as vozes prosseguiam, Tens comida, perguntou um dos pastores, Pouca, respondeu José, e a mesma voz, Quando tudo estiver terminado vem dizer-me e levar-te-ei leite das minhas ovelhas, e logo a segunda voz se ouviu, E eu queijo te darei. Houve um longo e não explicado silêncio antes que o terceiro pastor falasse. Finalmente, numa voz que parecia, também ela, vir de debaixo da terra, disse, E eu pão lhe hei-de levar. O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio.
Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. Envolto em panos, repousa na manjedoura, não longe do burro, porém não há perigo de ser mordido, que ao animal prenderam-no curto. Zelomi saiu fora a enterrar as secundinas, ao tempo que José se vem aproximando. Ela espera que ele entre e deixa-se ficar, respirando a brisa fresca do anoitecer, cansada como se tivesse sido ela a parir, é o que imagina, que filhos seus próprios nunca os teve. Descendo a encosta, aproximam-se três homens. São os pastores. Entram juntos na cova. Maria está recostada e tem os olhos fechados. José, sentado numa pedra, apoia o braço na borda da manjedoura e parece guardar o filho. O primeiro pastor avançou e disse, Com estas minhas mãos mungi as minhas ovelhas e recolhi o leite delas. Maria, abrindo os olhos, sorriu. Adiantou-se o segundo pastor e disse, por sua vez, Com estas minhas mãos trabalhei o leite e fabriquei o queijo. Maria acenou com a cabeça e voltou a sorrir. Então, o terceiro pastor chegou-se para diante, num momento pareceu que enchia a cova com a sua grande estatura, e disse, mas não olhava nem o pai nem a mãe da criança nascida, Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E
Maria soube quem ele era. Como sempre desde que o mundo é mundo, para cada um que nasce, há outro que agoniza. O de agora, falamos do que está à morte, é o rei Herodes, que sofre, além do mais e pior que se dirá, de uma horrível comichão que o põe às portas da loucura, como se as mandíbulas miudinhas e ferozes de cem mil formigas lhe estivessem roendo o corpo, infatigáveis. Depois de terem experimentado, com nenhumas melhoras, quantos bálsamos se usaram até hoje em todo o orbe conhecido, sem exclusão do Egipto e da Índia, os médicos reais, já de cabeça perdida ou, para ser mais exacto, com medo de perdê-la, lançaram-se a compor banhos e mezinhas ao acaso, misturando em água ou óleo quaisquer ervas ou pós de que alguma vez se tivesse dito algum bem, mesmo sendo contrárias as indicações da farmacopeia. O rei, possesso de dor e furor, com a espuma a saltar-lhe da boca como se o tivesse mordido um cão raivoso, ameaça que os fará crucificar a todos se não descobrirem rapidamente remédio suficiente para os seus males, que, como já foi antecipado, não se limitam ao ardor insofrível da pele e também às convulsões que frequentemente o derrubam, o atiram ao chão, fazendo dele um novelo retorcido, agónico, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, as mãos rasgando as vestes, por baixo das quais as formigas, multiplicando-se, prosseguem o devastador trabalho. O pior, o pior verdadeiramente, é a gangrena que se tem manifestado nestes últimos dias, e esse horror sem explicação nem nome de que se fala em segredo no palácio, a saber, os vermes que infestam os órgãos genitais da real pessoa e que, esses sim, a estão devorando em vida. Os gritos de Herodes atroam as salas e as galerias do palácio, os eunucos que o servem directamente não dormem nem descansam, os escravos de nível inferior fogem de encontrar-se no seu caminho. Arrastando um corpo que fede de putrefacção, apesar dos perfumes de que leva embebidas as roupas e ungidos os cabelos pintados, a Herodes só o mantém vivo a fúria. Transportado numa liteira, rodeado de médicos e de guardas armados, percorre o palácio de um extremo a outro à procura de traidores, desde há muito que os vê ou adivinha em toda a parte, e o seu dedo de súbito aponta, pode ser um chefe de eunucos que estava conquistando demasiada influência, ou um fariseu recalcitrante que anda protestando contra os que desobedecem à lei devendo ser os primeiros a respeitá-la, neste caso nem é preciso pronunciar um nome para saber de quem se trata, podem ser ainda os seus próprios filhos Alexandre e Aristóbulo, presos e logo condenados à morte por um tribunal de nobres à pressa convocado para essa sentença e não outra, ora, que outra coisa poderia ter feito este pobre rei se em alucinados sonhos via aqueles maus filhos avançando para ele de espada nua, e se, no mais abominável dos pesadelos, olhava, como num espelho, a sua própria cabeça cortada. Do fim terrível conseguiu livrar-se, agora pode contemplar tranquilamente os cadáveres daqueles que um minuto antes ainda eram herdeiros de um trono, os seus próprios filhos, culpados de 27