Sentado na entrada da cova, José continua às voltas com os seus pensamentos, a deitar contas à vida, já sabe que em Belém não tem qualquer hipótese, nem sequer como assalariado, que bem o tentara antes, sem resultado, a não ser as palavras do costume, Quando precisar de ajudante, mando-te chamar, são promessas que não enchem a barriga, embora este povo ande a viver delas desde que nasceu. Mil vezes a experiência tem demonstrado, mesmo em pessoas não particularmente dadas à reflexão, que a melhor maneira de chegar a uma boa ideia é ir deixando discorrer o pensamento ao sabor dos seus próprios acasos e inclinações, mas vigiando-o com uma atenção que convém parecer distraída, como se se estivesse a pensar noutra coisa, e de repente salta-se em cima do desprevenido achado como um tigre sobre a presa. Foi desta maneira que as falsas promessas dos mestres-carpinteiros de Belém levaram José a pensar em Deus e nas suas, dele, promessas verdadeiras, e daí ao templo de Jerusalém e às obras que aqui ainda se estavam fazendo, enfim, branco é galinha o pôs, já se sabe que onde haja obras, obreiros em geral se necessitam, pedreiros e canteiros em primeiro lugar, mas também carpinteiros, quanto mais não seja para esquadriar barrotes e aplainar pranchas, primárias operações que estão ao alcance da arte de José. O único defeito que a solução apresenta, supondo que lhe vão dar o emprego, é a distância a que está o local do trabalho, uma boa hora e meia de caminho, ou mais, a andar bem, que de cá para lá tudo são subidas, sem um santo alpinista para ajudar, salvo se levar consigo o burro, mas então terá José para resolver o problema de onde deixar em segurança o animal, que não é por ser esta terra, sobre todas, a preferida de Deus, que acabaram os ladrões nela, não temos mais que recordar o que todas as noites vem dizendo o profeta Miqueias.
Cavilando estava José sobre estas complexas questões quando Maria saiu da cova, acabara de dar de mamar ao filho e de aconchegá-lo na manjedoura. Como está Jesus, perguntou o pai, consciente da expressão um tanto ridícula duma pergunta formulada assim, mas incapaz de resistir ao orgulho de ter um filho e poder dar-lhe um nome. O menino está bem, respondeu Maria, para quem o menos importante de tudo ainda era o nome, poderia mesmo chamar-lhe menino toda a sua vida se não tivesse por certo que fatalmente outros filhos hão-de nascer, chamar meninos a todos seria uma confusão como a de Babel. Deixando sair as palavras como se apenas estivesse a pensar em voz alta, maneira de não dar demasiada confiança, José disse, Tenho de dar caminho à vida enquanto cá estivermos, em Belém não se encontra trabalho que preste. Maria não respondeu nem tinha que responder, estava ali apenas para ouvir, e já era muito favor o que o marido lhe fazia. Olhou José o sol, a calcular o tempo de que disporia para ir e voltar, foi dentro da cova a buscar o manto e o alforge, e tornando anunciou, Com Deus me vou e a Deus me confio para que me dê trabalho na sua casa, se para tão grande mercê achar merecimentos em quem nele põe toda a esperança e é honesto artífice. Cruzou a aba direita do manto por cima do ombro esquerdo, acomodou nele o alforge e sem 29
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
mais palavra meteu pés ao caminho. Em verdade, há horas felizes. Embora as obras do templo levassem já grande adiantamento, ainda havia trabalho para novos contratados, sobretudo se não eram exigentes na hora de combinar a soldada. José passou sem dificuldade as provas de aptidão a que ligeiramente o submeteu um contramestre de carpinteiros, resultado inesperado que nos deveria fazer reflectir se não teremos andado a ser algo injustos nos comentários pejorativos que, desde o princípio deste evangelho, temos feito acerca da competência profissional do pai de Jesus. Foi-se dali o novel trabalhador do templo dando múltiplas graças a Deus, algumas vezes deteve no caminho viandantes que com ele se cruzavam, para pedir-lhes que o acompanhassem nos louvores ao Senhor, e eles, benévolos, satisfaziam-no com grandes sorrisos, que neste povo a alegria de cada um foi quase sempre a alegria de todos, falamos, claro está, de gente miúda como esta. Quando chegou à altura do túmulo de Raquel, ocorreu a José uma ideia que mais lhe terá subido das entranhas do que se criou no cérebro, e foi que esta mulher que tanto desejara outro filho veio a morrer, permita-se a expressão, às mãos dele, e nem tempo teve para conhecê-lo, nenhuma palavra, nenhum olhar, um corpo que se separa doutro corpo, tão indiferente a ele como um fruto que se desprende da árvore. Depois teve um pensamento ainda mais triste, o de os filhos sempre morrerem por causa dos pais que os geraram e das mães que os puseram no mundo, e então teve pena do seu próprio filho, condenado à morte sem culpa. Angustiado, confuso, postado diante do túmulo da esposa mais amada de Jacob, o carpinteiro José deixou cair os braços e pender a cabeça, todo o seu corpo se alagava de um frio suor, e na estrada, agora, não passava ninguém a quem pudesse pedir um auxílio. Compreendeu que pela primeira vez na sua vida duvidava do sentido do mundo, e, como quem renuncia a uma última esperança, disse em voz alta, Vou morrer aqui. Talvez que estas palavras, noutros casos, se fôssemos capazes de pronunciá-las com toda a força e convicção, como se supõe que é a dos suicidas, estas palavras poderiam, sem dor nem lágrimas, abrir-nos, por si sós, a porta por onde se sai do mundo dos vivos, mas o geral dos homens padece de instabilidade emocional, uma alta nuvem o distrai, uma aranha tecendo a sua teia, um cão que persegue uma borboleta, uma galinha que esgaravata a terra e cacareja chamando os filhos, ou algo ainda mais simples, do próprio corpo, como sentir uma comichão na cara e coçá-la, e depois perguntar-se, Em que estava eu a pensar. Foi por isto que de um momento para o outro o túmulo de Raquel se tornou no que era, uma pequena construção caiada, sem janelas, como um dado perdido, esquecido por não fazer falta ao jogo, manchada a pedra que tapa a entrada pelo suor e pela sujidade das mãos dos peregrinos que aqui têm vindo desde os tempos antigos, e ao redor oliveiras que talvez já fossem velhas quando Jacob escolheu este local para última morada da pobre mãe, sacrificando as que foi preciso para despejar o terreno, afinal bem se pode afirmar que o destino existe, o destino de cada um é nas mãos dos outros que está. Então José foi-se dali, mas antes ainda deixou uma bênção, a que lhe pareceu mais própria da ocasião e do lugar, disse ele, Bendito sejas tu, Senhor, nosso Deus e Deus de nossos pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob, grande, poderoso e maravilhoso Deus, bendito sejas. Quando entrou na cova, e ainda antes de informar a mulher de que tinha arranjado trabalho, José foi à manjedoura ver o filho, que dormia. Disse consigo mesmo, Morrerá, terá de morrer, e o coração doeu-lhe, mas depois pensou que, segundo a ordem natural das coisas, deverá ser o primeiro a morrer, e que essa morte sua, ao retirá-lo de entre os vivos, ao fazer dele ausência, dará ao filho uma espécie de, como dizer, eternidade limitada, passe a contradição, a eternidade que é continuar ainda por algum tempo mais quando os que conhecemos e amámos já não existem. Não prevenira José o capataz do seu grupo de que só ficaria ali umas poucas semanas, com certeza não mais do que cinco, o tempo de levar o filho ao Templo, purificar-se a mãe e fazer as malas. Tinha-se calado por medo de que não o recebessem, pormenor que mostra não estar o carpinteiro nazareno muito em dia com as relações de trabalho do seu país, provavelmente por se considerar e realmente ser trabalhador por conta própria, portanto distraído das realidades do mundo obreiro, naquele tempo composto, quase exclusivamente, por tarefeiros.