Mantinha-se atento à contagem dos dias que faltavam, vinte e quatro, vinte e três, vinte e dois, e, para não se enganar, improvisara um calendário numa das paredes da gruta, dezanove, com uns tantos riscos que ia sucessivamente cortando, dezasseis, perante o pasmo respeitoso de Maria, catorze, treze, que dava graças ao Senhor por lhe ter dado, nove, oito, sete, seis, marido em tudo tão capaz. José tinha-lhe dito, Partimos logo depois de irmos ao Templo, que já me tardam Nazaré e os fregueses que lá deixei, e ela, suavemente, para não parecer que o corrigia, Mas não podemos ir-nos daqui sem 30
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
agradecer à dona da gruta e à escrava que me assistiu, que quase todos os dias cá vem, a saber como está o menino. José não respondeu, nunca confessaria que não se lembrara de um gesto tão elementar, a prova estava em que a sua primeira intenção fora levar o burro já carregado, pô-lo a guardar durante o tempo dos ritos, e ala para Nazaré, sem perder tempo com agradecimentos e adeuses. Maria tinha razão, seria uma grosseria irem-se dali sem uma palavra, mas a verdade, se em todas as coisas a pobrezinha prevalecesse, obrigá-lo-ia a confessar que em matéria de boa educação estava bastante falto. Durante uma hora, por causa do seu próprio erro, andou irritado com a mulher, sentimento que habitualmente lhe servia para abafar recriminações da consciência. Ficariam, pois, dois ou três dias mais, fariam as suas despedidas em boa e devida forma, com tais e tantas vénias que não ficariam dúvidas nem dívidas, e então, sim, poderiam partir, deixando nos habitantes de Belém a recordação feliz duma família de galileus piedosos, bem-educados e cumpridores do dever, excepção portanto assinalável, se tivermos em conta a fraca opinião que os habitantes de Jerusalém e arredores, no geral, fazem da gente de Galileia. Chegou, enfim, o memorável dia em que o menino Jesus foi levado ao Templo ao colo de sua mãe, cavalgando ela o paciente asno que desde o princípio acompanha e ajuda esta família. José leva o burro pela arreata, tem pressa de chegar, pois não quer perder todo um dia de trabalho, apesar de estar em vésperas de partida. Por essa razão, também, é que tinham saído de casa tão cedo, quando a fresca madrugada ainda estava empurrando com as suas mãos aurorais a última sombra nocturna. O túmulo de Raquel já ficou para trás, tocava-lhe a frontaria, quando por ele passaram, uma ardente cor de romã, nem parecia a mesma parede que a noite opaca torna lívida e a que a lua alta dá uma ameaçadora brancura de ossos ou cobre de sangue ao nascer. Às tantas, o infante Jesus acordou, mas agora a valer, que antes mal abrira os olhos quando sua mãe o enfaixara para a viagem, e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas. Já perto de Jerusalém, na íngreme ladeira, a família confundiu-se com a multidão de peregrinos e vendedores que afluíam à cidade, todos parecendo querer ser os primeiros a chegar, mas, por cautela, moderando a pressa e refreando a excitação à vista dos soldados romanos que, aos pares, vigiavam os ajuntamentos, e de um ou outro grupo da tropa mercenária de Herodes, onde se podia encontrar de tudo, recrutas judeus, evidentemente, mas também idumeus, gálatas e trácios, germanos e gauleses, e até babilónios, com a sua fama de habilíssimos arqueiros. José, carpinteiro e homem de paz, combatente dessas pacíficas armas que se chamam plaina e enxó, maço e martelo, ou pregos e cavilhas, tem, para com estes ferrabrases, um sentimento misto, muito de temor, algo de desprezo, que não o deixa ser natural, nem mesmo na simples maneira de olhar. Por isso vai passando de olhos baixos, e é Maria, aquela que sempre está metida em casa, e nestas semanas mais resguardada ainda, oculta numa cova, onde só é visitada por uma escrava, é Maria quem tudo vai olhando em redor, curiosa, com o queixinho levantado de compreensível orgulho, pois leva ali o seu primogénito, ela, uma fraca mulher, mas muito capaz, como se vê, de dar filhos a Deus e a seu marido. Tão irradiante vai em sua felicidade que uns toscos e brutos mercenários gauleses, louros, de grandes bigodes pendentes, armas postas, mas afinal, supõe-se, de tenro coração diante deste renovo do mundo que é uma jovem mãe com o seu primeiro filho, estes guerreiros endurecidos sorriram à passagem da família, com podres dentes sorriram, é certo, mas o que conta é a intenção.
Aí está o Templo. Visto assim de perto, do plano inferior em que estamos, é uma construção que dá vertigens, uma montanha de pedras sobre pedras, algumas que nenhum poder do mundo pareceria ser capaz de aparelhar, levantar, assentar e ajustar, e contudo estão ali, unidas pelo próprio peso, sem argamassa, tão simplesmente como se o mundo fosse todo ele uma construção de armar, até às altíssimas cimalhas que, olhadas de baixo, parecem roçar o céu, como outra e diferente torre de Babel que a protecção de Deus, contudo, não logrará salvar, pois um igual destino a espera, ruína, confusão, sangue derramado, vozes que mil vezes perguntarão, Porquê, imaginando que há uma resposta, e que mais cedo ou mais tarde acabam por calar-se, porque só o silêncio é certo. José foi deixar o asno a guardar num caravançarai de bestas que no tempo da Páscoa e outras festas não teria nem espaço para sacudir-se um camelo as moscas com o rabo, mas que nestes dias, passado o prazo do recenseamento e regressados os viajantes às suas terras, não tinha mais que a sua ocupação normal, neste momento, aliás, bastante diminuída em virtude da hora matutina. Porém, no Pátio dos Gentios, 31