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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

que rodeava, entre o grande quadrilátero das arcadas, o recinto do Templo propriamente dito, havia já uma multidão de gente, cambistas, passarinheiros, marchantes que vendiam borregos e cabritos, peregrinos que sempre vinham por um motivo ou outro, e também muitos estrangeiros aqui trazidos pela curiosidade de conhecer o templo mandado construir pelo rei Herodes, de que em todo o mundo se fala. Mas sendo o pátio o que era, aquela imensidão, alguém que se encontrasse do lado oposto não pareceria maior do que um minúsculo insecto, como se os arquitectos de Herodes, tomando para si o olhar de Deus, tivessem querido sublinhar a insignificância do homem perante o Todo-Poderoso, mormente em se tratando de gentios. Porque os judeus, se não vêm apenas a passear como ociosos, têm no centro do pátio o seu objectivo, o centro do mundo, o umbigo dos umbigos, o santo dos santos.

Para lá vão caminhando o carpinteiro e sua mulher, para lá vai sendo levado Jesus, depois de ter seu pai comprado duas rolas a um comissário do Templo, se a designação é apropriada para quem serve o monopólio deste religioso negócio. As pobres avezinhas não sabem ao que vão, embora o cheiro de carne e de penas queimadas que paira no ar não devesse enganar ninguém, sem falar de cheiros muito mais fortes, como o do sangue, ou o da bosta dos bois arrastados para o sacrifício e que de premonitório medo se borram desgraçadamente. José é o que leva as rolas, aconchegadas no côncavo das suas grossas mãos de obreiro, e elas, iludidas, dão-lhe, de pura satisfação, umas bicadas suaves nos dedos, encurvados em forma de gaiola, como se quisessem dizer ao novo dono, Ainda bem que nos compraste, contigo queremos ficar. Maria não dá por nada, agora só para o filho tem olhos, e a pele de José é demasiado dura para sentir e decifrar o morse amoroso do casal de rolinhas. Vão entrar pela Porta da Lenha, uma das treze passagens por onde se chega ao Templo, e que, como todas as outras, tem em proclama uma lápida insculpida em grego e latim, que assim reza, A nenhum gentio é permitido cruzar este limiar e a barreira que rodeia o Templo, aquele que se atrever pagará com a vida. José e Maria entram, entra Jesus levado por eles, e a seu tempo sairão a salvo, mas as rolas, já o sabíamos, vão morrer, é o que quer a lei para reconhecer e confirmar a purificação de Maria. A um espírito voltaireano, irónico e irrespeitoso, se bem que nada original, não escaparia o ensejo de observar que, vistas as coisas, parece ser condição para a manutenção da pureza no mundo existirem nele animais inocentes, rolas ou cordeiros sejam. Sobem José e Maria os catorze degraus por onde se acede, finalmente, à plataforma sobre a qual está levantado o Templo. Aqui é o Pátio das Mulheres, à esquerda está o armazém do azeite e do vinho usados na liturgia, à direita a câmara dos nazireus, que são uns sacerdotes que não pertencem à tribu de Levi e a quem se proíbe cortar o cabelo, beber vinho ou aproximar-se de um cadáver. Em frente, do outro lado, ladeando a porta fronteira a esta, e também à esquerda e à direita, respectivamente, a câmara onde os leprosos que se crêem curados esperam que os sacerdotes vão observá-los e o armazém onde se guarda a lenha, todos os dias inspeccionada porque ao fogo do altar não podem ser levadas madeiras apodrecidas ou bichosas. Maria já não tem muitos mais passos que dar. Ainda subirá os quinze degraus semicirculares que levam à Porta de Nicanor, também Preciosa chamada, mas aí se deterá, porque às mulheres não é permitido entrar no Pátio dos Israelitas, para onde dá a porta. À entrada estão os levitas à espera dos que vêm oferecer sacrifícios, porém neste lugar a atmosfera será tudo menos piedosa, salvo se a piedade era então compreendida doutra maneira, não é só o cheiro e o fumo das gorduras estorricadas, do sangue fresco, do incenso, é também o vozear dos homens, os berros, os balidos, os mugidos dos animais que esperam vez no matadouro, o último e áspero grasnido duma ave que antes soubera cantar. Maria diz ao levita que os atendeu que vem para a purificação e José entrega as rolas. Por um momento, Maria pousa as mãos sobre as avezinhas, será o seu único gesto, e logo o levita e o marido se afastam e desaparecem atrás da porta. Não se moverá Maria dali até que José regresse, apenas se aparta a um lado para não obstruir a passagem, e, com o filho nos braços, espera. Lá dentro é uma forja, um talho e um matadouro. Em cima de duas grandes mesas de pedra preparam-se as vítimas de maiores dimensões, os bois e os vitelos, sobre tudo, mas também carneiros e ovelhas, cabras e bodes. Perto das mesas encontram-se uns altos pilares onde se dependuram, em ganchos chumbados na pedra, as carcaças das reses, e vê-se a frenética actividade do arsenal dos açougues, as facas, os cutelos, os machados, os serrotes, a atmosfera está carregada dos fumos da lenha e dos coiratos queimados, de vapor de sangue e de suor, uma alma qualquer, que nem precisará ser santa, das vulgares, terá dificuldade em entender como poderá Deus sentir-se feliz em meio de tal carnificina, sendo, como diz que é, pai comum dos homens e das bestas. José tem de ficar do lado de fora da balaustrada que 32

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separa o Pátio dos Israelitas do Pátio dos Sacerdotes, mas pode olhar à vontade, donde está, o Grande Altar, com mais de quatro vezes a altura de um homem, e ao fundo o Templo, enfim falamos do autêntico, porque isto aqui é como aquelas caixas abissais que nesta época já se fabricam na China, umas dentro de outras, avistamos de longe e dizemos, O Templo, quando entramos no Pátio dos Gentios tornamos a dizer, O Templo, e agora o carpinteiro José, apoiado à balaustrada, olha e diz, O

Templo, e é ele quem tem razão, ali está a larga fachada com as suas quatro colunas embebidas na parede, com os seus capitéis festoados de folhas de acanto, à moda grega, e o altíssimo vão de porta, sem porta material, porém, para chegar lá dentro, onde habita Deus, Templo dos Templos, seria preciso contrariar todas as proibições, passar o Lugar Santo, chamado Hereal, e, enfim, entrar no Debir, que é, final e derradeira caixa, o Santo dos Santos, essa terrível câmara de pedra, vazia como o universo, sem janelas, onde a luz do dia não entrou nunca nem entrará, salvo quando soar a hora da destruição e da ruína e todas as pedras se parecerem umas com as outras. Deus é tanto mais Deus quanto mais inacessível for, e José não passa de pai de um menino judeu entre os meninos judeus, que vai ver morrer duas rolas inocentes, o pai, não o filho, que esse, inocente também, ficou ao colo da mãe, imaginando, se tanto pode, que o mundo será sempre assim. Junto ao altar, feito de grandes pedras em tosco, que nenhuma ferramenta metálica tocou desde que foram arrancadas da pedreira até virem ocupar o seu lugar na gigantesca construção, um sacerdote, descalço, vestido com uma túnica de linho, espera que o levita lhe entregue as rolas. Recebe a primeira, leva-a até uma esquina do altar e aí, de um só golpe, separa-lhe a cabeça do corpo. O sangue esguicha. O sacerdote esparge com ele a parte inferior do altar, e vai depois colocar a ave degolada num escoadouro onde acabará de dessangrar-se, e aonde, acabado o turno de serviço, irá buscá-la, pois passou a pertencer-lhe. A outra rola gozará da dignidade do sacrifício completo, o que significa que será queimada. O sacerdote sobe a rampa que leva ao cimo do altar, onde arde o fogo sagrado, e, sobre a cornija, na segunda esquina do mesmo lado, sudeste esta, sudoeste a primeira, descabeça a ave, rega com o sangue o chão da plataforma, em cujos cantos se erguem ornamentos como cornos de carneiro, e arranca-lhe as vísceras. Ninguém dá atenção ao que se passa, é apenas uma pequena morte. José, de cabeça levantada, quereria perceber, identificar, entre o fumo geral e os cheiros gerais, o fumo e o cheiro do seu sacrifício, quando o sacerdote, depois de salgar a cabeça e o corpo da ave, os atirar à fogueira.