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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

repentina e opressiva angústia, querendo encontrar uma explicação para tão decaído estado de ânimo, pensou que podia tratar-se do natural sentimento de quem vai ser obrigado a deixar obra em meio, mesmo não sendo ela sua e tendo para partir tão bons motivos. Levantou-se, deitando contas ao tempo de que poderia dispor, o manajeiro nem sequer virou a cabeça para ele, e decidiu dar uma rápida volta pela parte da construção em que tinha trabalhado, a despedir-se, por assim dizer, das tábuas que alisara, das traves que regulara, se tal identificação era possível, qual é a abelha que pode dizer, Este mel fi-lo eu. No fim do breve passeio, quando já estava voltando ao dever, parou um momento a contemplar a cidade que se levantava na encosta fronteira, toda construída em degraus, com a sua cor de pedra tostada que era como a cor do pão, de certeza que o manajeiro já chamara, mas José agora não tinha pressa, olhava a cidade e esperava não sabia o quê. Passou tempo e nada aconteceu, José murmurou, no tom de quem desiste de algo, Bom, tenho de ir, e nesse momento ouviu vozes que vinham de um caminho abaixo do local onde se encontrava, e, inclinando-se sobre o muro de pedra que o separava dele, viu que eram três soldados. Decerto tinham vindo andando por aquele caminho, mas agora estavam parados, dois deles, com o coto da lança no chão, escutavam o terceiro, que era mais velho e provavelmente superior hierárquico deles, embora perceber a diferença não fosse fácil a quem não tivesse informação sobre o desenho, número e disposição das divisas, na sua forma habitual de estrelas, barras ou cantoneiras. As palavras cujo som chegara aos ouvidos de José de uma maneira confusa deviam ter sido qualquer pergunta, por exemplo, E a que horas vai ser isso, uma vez que o subalterno dizia, agora muito claramente e no tom de quem responde, Ao princípio da hora terça, quando já toda a gente está recolhida, e um dos dois perguntou, Quantos vamos, Ainda não sei, mas seremos os suficientes para cercar a aldeia, E então a ordem é matá-los a todos, A todos não, só aqueles que tiverem menos de três anos, Entre dois e quatro anos vai ser difícil saber à justa que idade têm, E isso vai dar quantos, quis saber o segundo soldado, Pelo censo, disse o chefe que devem ser aí uns vinte e cinco. José arregalava os olhos, como se a completa compreensão do que ouvia pudesse entrar por eles, mais do que pelos ouvidos, o corpo arrepiava-se-lhe todo, pelo menos era patente e claro que aqueles soldados falavam de ir matar pessoas, Pessoas, que pessoas, interrogava-se a si mesmo, desorientado, aflito, não, não eram pessoas, ou sim, pessoas eram, mas crianças, Os que tiverem menos de três anos, tinha dito o cabo, ou talvez fosse sargento ou furriel, e onde, onde vai isto ser, José não podia debruçar-se do muro e perguntar, A guerra é onde ó rapazes, agora estava banhado em suor, tremiam-lhe as pernas, foi então que se tornou a ouvir a voz do subalterno e o tom era ao mesmo tempo sério e de alívio, Sorte dos nossos filhos e nossa, que não vivemos em Belém, E já se sabe por que nos mandam matar os meninos de Belém, perguntou um soldado, O chefe não me disse, cuido que ele próprio não sabe, é ordem do rei, e basta. O outro soldado, riscando o chão com o coto da lança, como o destino que parte e reparte, disse, Muito desgraçados somos nós, que não nos chega praticarmos a parte de mal que nos coube por natureza, e ainda temos de ser braço da maldade de outros e do seu poder. Estas palavras já não foram ouvidas por José, que se afastara do seu providencial palanque, primeiro de mansinho, pé ante pé, logo numa louca corrida, saltando as pedras como um cabrito, em ânsias, razão por que, faltando o seu testemunho, seja lícito duvidar da autenticidade da filosófica reflexão, quer quanto ao fundo quer quanto à forma, tendo em conta a mais do que óbvia contradição entre a notável propriedade dos conceitos e a ínfima condição social de quem os teria produzido. Desvairado, atropelando agora quem lhe aparecesse por diante, derrubando tabuleiros de grutas e gaiolas de pássaros, até a mesa de um cambista, quase sem ouvir os gritos furiosos dos vendilhões do Templo, José não tem outro pensamento que irem matar-lhe o filho, e nem sabe porquê, dramática situação, este homem deu a vida a uma criança, outro lha quer tirar, e tanto vale uma vontade como a outra, fazer e desfazer, atar e desatar, criar e suprimir. De súbito pára, apercebe-se do perigo se continuar nesta correria desabalada, aparecem por aí os guardas do Templo e prendem-no, sorte inexplicável foi ainda não terem dado pelo tumulto. Então, disfarçando o melhor que podia, como piolho que se acolhe à protecção da costura, insinuou-se pelo meio da multidão, e num instante tornou-se anónimo, a diferença era apenas que caminhava um pouco mais depressa, mas isso, no meio do labirinto de gente, mal se notava. Sabe que não deve correr enquanto não chegar à porta da cidade, mas angustia-o o pensamento de que os soldados poderão ir já a caminho, armados terrivelmente de lança, punhal e ódio sem causa, e se por desgraça é a cavalo que vão, trotando estrada abaixo como de passeio, então não há quem os alcance, quando chegar estará o meu filho 35

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

morto, infeliz menino, Jesus da minha alma, ora é neste momento da mais sentida aflição que um pensamento estúpido entra como um insulto na cabeça de José, o salário, o salário da semana que vai ser obrigado a perder, e é tanto o poder destas vis coisas materiais que o acelerado passo, não indo ao ponto de deter-se, um tudo-nada se lhe retarda, como a dar tempo ao espírito de ponderar as probabilidades de reunir ambos os proveitos, por assim dizer, a bolsa e a vida. Foi tão subtil a mesquinha ideia, como uma luz velocíssima que surgisse e desaparecesse sem deixar memória imperativa duma imagem definida, que José nem vergonha chegou a sentir, esse sentimento que é, quantas vezes, porém não as suficientes, nosso mais eficaz anjo-da-guarda. José sai finalmente da cidade, a estrada em frente está livre de soldados até ao mais longe que a vista alcança, e não se notam sinais de agitação popular nesta saída, como certamente aconteceria se tivesse havido ali parada militar, mas o indício mais seguro ainda é o que lhe dão as crianças, jogando os seus jogos inocentes, sem mostra da excitação bélica que delas se apodera quando bandeira, tambor e clarim desfilam, e aquele ancestral costume de irem com a tropa, se os soldados tivessem passado não se veria aqui um só garoto, pelo menos escoltariam o destacamento até à primeira curva, acaso um deles, de mais forte vocação castrense, os decidiria acompanhar até ao objectivo da missão, e assim ficaria a conhecer o que o espera no futuro, matar e ser morto. Agora José já pode correr, e corre, corre, aproveita o declive tanto quanto lho permite a travação da túnica, apesar de a levar levantada até aos joelhos, mas, como num sonho, tem a sensação angustiante de que as pernas não são capazes de acompanhar o impulso da parte superior do corpo, coração, cabeça e olhos, mãos que querem proteger e tanto tardam. Há quem pare na estrada para olhar, escandalizado, a alucinada corrida, na verdade chocante, pois este povo cultiva, em geral, a dignidade da expressão e a compostura do porte, a única justificação que José tem não é ir a salvar o filho, mas ser galileu, dessa gente grosseira, sem educação, como por mais de uma vez foi dito. Já passa em frente do túmulo de Raquel, nunca esta mulher pensou vir a ter tantas razões para chorar os filhos, cobrir de gritos e clamores as pardas colinas ao redor, arranhar-se a cara, ou os ossos dela, arrancar-se os cabelos, ou ferir o desnudo crânio. Agora, José, antes mesmo das primeiras casas de Belém, deixa a estrada e mete-se campo adentro, a corta-mato, Vou pelo caminho mais curto, eis o que responderá se quisermos saber o motivo desta novidade, e realmente talvez o seja, mas não é de certeza o mais cómodo. Evitando encontros com gente que trabalhava no campo, cosendo-se com as pedras para que não o vissem os pastores, José teve de fazer um largo rodeio para chegar à cova onde a mulher o não espera a esta hora e o filho nem a esta nem a outra, porque está dormindo. A meio da encosta da última colina, tendo já diante de si a negra fenda da gruta, José é assaltado por um terrível pensamento, o de que a mulher está na aldeia e tem o filho consigo, é o mais natural, sendo as mulheres como são, aproveitou estar só para despedir-se com vagar da escrava Zelomi e de algumas mães de família com quem se dera mais durante estas semanas, a José competiria agradecer formalmente aos donos da cova. Por um instante, viu-se correr pelas ruas da aldeia, batendo às portas, Está cá a minha mulher, seria ridículo dizer, Está cá o meu filho, e perante a sua aflição alguém lhe perguntaria, por exemplo, uma mulher com o filho ao colo, Há alguma novidade, e ele, Que não, novidade nenhuma, é que partimos amanhã cedo e temos de fazer as malas. Vista daqui, a aldeia, com as suas casas iguais, as açoteias rasas, lembra o estaleiro do Templo, pedras dispersas à espera de que venham os operários colocá-las umas sobre as outras e com elas erguer uma torre para a vigia, um obelisco para o triunfo, um muro para as lamentações. Um cão ladrou longe, outros lhe responderam, mas o cálido silêncio da última hora da tarde ainda paira sobre a aldeia como uma bênção esquecida, quase a perder a sua virtude, o mesmo que um fiapo de nuvem que se esvai. A paragem mal durou o tempo de dizê-la. Numa última corrida o carpinteiro chegou à entrada da gruta, chamou, Maria, estás aí, e ela respondeu-lhe de dentro, foi neste momento que José percebeu quanto lhe tremiam as pernas, do esforço feito, sem dúvida, mas também, agora, do choque de saber que o filho estava a salvo. Dentro, Maria cortava verduras para a ceia, o menino dormia na manjedoura. Sem forças, José ainda se deixou cair no chão, mas levantou-se logo, dizendo, Vamo-nos embora, vamo-nos embora, e Maria olhou-o sem perceber, Que nos vamos embora, perguntou, e ele, Sim, agora mesmo, Mas tu tinhas dito, Cala-te e enrola as coisas, enquanto arreio o burro, Não ceamos primeiro, Cearemos no caminho, Não tarda que seja noite, vamo-nos perder, então José deu um grito, Cala-te, já disse, e faz o que te mando. Saltaram as lágrimas a Maria, era a primeira vez que o marido lhe levantava a voz, e sem mais palavra começou a arrumar e embalar 36