José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
os poucos haveres, Depressa, depressa, repetia ele, ao tempo que punha a albarda no burro e apertava a cilha, depois, ao acaso, enchia os seirões com o que apanhava à mão, misturando tudo, perante o assombro de Maria, que não reconhecia o seu marido. Já estavam em pé de marcha, não faltava mais que cobrir de terra o lume e sair, quando José, tendo feito sinal à mulher para que não viesse com ele, se aproximou da entrada da gruta e espreitou para fora. Um crepúsculo cinzento confundia o céu com a terra. O sol ainda não se pusera, mas a névoa espessa, se estava bastante alta para não prejudicar a visão dos campos em redor, impedia que a luz se espalhasse. José apurou o ouvido, deu alguns passos, e de repente eriçaram-se-lhe de pavor os cabelos, alguém gritara na aldeia, um grito agudíssimo que nem parecera de uma voz humana, e logo depois, ainda os ecos pareciam ressoar de colina a colina, um clamor de novos gritos e prantos encheu a atmosfera, não eram os anjos chorando sobre a desgraça dos homens, eram os homens enlouquecendo debaixo de um céu vazio. Devagar, como se temesse que o ouvissem, José recuou para a entrada da cova, esbarrando com Maria que não acatara a ordem. Toda ela tremia, Que gritos são aqueles, perguntou, mas o marido não lhe respondeu, empurrou-a para dentro e, em movimentos rápidos, começou a lançar terra sobre a fogueira. Que gritos eram aqueles, tornou a perguntar Maria, invisível na escuridão, e José respondeu, depois de um silêncio, Estão a matar gente. Fez uma pausa e acrescentou, como em segredo, Crianças, por ordem de Herodes, a voz quebrou-se num soluço seco, Por isso quis que partíssemos. Ouviu-se um rumor de panos e de palha mexida, Maria levantava o filho da manjedoura e apertava-o ao peito, Jesus, que te querem matar, a última palavra afogaram-na as lágrimas, Cala-te, disse José, não faças rumor, pode ser que os soldados não venham aqui, a ordem é para matar as crianças de Belém com menos de três anos, Como soubeste, Ouvi dizer no Templo, por isso vim a correr para aqui, E agora, que fazemos, Estamos fora da aldeia, não é natural que os soldados venham passar revista a todas estas covas, a ordem deve ter sido só para ir às casas, que ninguém nos denuncie e salvamo-nos. Saiu outra vez a espreitar, assomando apenas, os gritos tinham cessado, não se ouvia mais que um coro choroso que ia diminuindo pouco a pouco, a matança dos inocentes terminara. O céu continuava tapado, a noite principiada e a névoa alta tinham feito desaparecer Belém do horizonte dos habitantes celestes. José disse para dentro, Não saias daqui, vou até à estrada ver se os soldados já se foram embora, Tem cuidado, disse Maria, e não se lembrou de que o marido não corria qualquer perigo, a morte era para crianças com menos de três anos, a não ser que alguém que tivesse ido à estrada com o mesmo fim o denunciasse, dizendo, Esse é o carpinteiro José, pai dum rapaz que ainda não tem dois meses, e chama-se Jesus, talvez seja ele o da profecia, que dos nossos filhos nunca lemos ou ouvimos que estivessem destinados a realezas, e agora ainda menos, que estão mortos. No interior da cova o negrume podia-se palpar. Maria tinha medo da escuridão, habituara-se desde criança à presença contínua duma luz na casa, da fogueira ou da candeia, ou ambas, e a sensação, agora mais ameaçadora, por se encontrar no interior da terra, de que uns dedos de treva lhe vinham tocar a boca, apavorava-a. Não queria desobedecer ao marido nem expor o filho à possível morte, saindo da caverna, mas, segundo a segundo, o medo crescia dentro de si e não tardaria a rebentar as precárias defesas do bom senso, não servia de nada pensar, Se não havia coisas no ar antes de se apagar a fogueira, agora também não há, enfim, de algo serviu tê-lo pensado, às apalpadelas pousou o filho na manjedoura, e depois, rastejando com mil cuidados, procurou o sítio da fogueira, com uma acha afastou a terra que a cobria até fazer aparecer algumas brasas que ainda não tinham sido apagadas, e nesse momento todo o medo lhe desapareceu do espírito, viera-lhe à memória a terra luminosa, a mesma luz trémula e palpitante percorrida por rápidas fulgurações como um archote correndo sobre a crista de um monte. A imagem do mendigo surgiu e desapareceu logo, afastada pela urgência maior de fazer luz suficiente na cova aterradora. Maria, tenteando, foi à manjedoura buscar um punhado de palha, voltou guiada pelo pálido luzeiro do chão, e daí a um momento, resguardada num recanto que a escondia de quem de fora olhasse, a candeia iluminava as paredes próximas da caverna com uma desmaiada aura, evanescente, mas tranquilizadora. Maria chegou-se ao filho que continuava a dormir, indiferente a medos, agitações e mortes violentas, e, com ele ao colo, foi sentar-se ao pé da candeia, à espera. Decorreu algum tempo, o filho acordou, porém sem abrir de todo os olhos, fez uma súbita cara de choro que Maria, já madre sabedora, deteve com o simples gesto de abrir a túnica e oferecer o peito à boca sôfrega da criança. Assim estavam os dois quando se ouviram passos fora. No primeiro instante, pareceu a Maria que o coração se lhe parava, Serão os soldados, mas eram passos de uma só 37