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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

pessoa, se fossem soldados viriam juntos, pelo menos dois, como é táctica e costume, e sendo caso de buscas com mais razão ainda, um cobrindo o outro por causa de surpresas inesperadas, É José, pensou, e temeu que ele lhe ralhasse por ter acendido a candeia. Os passos, lentos, aproximaram-se mais, José já vinha entrando mas de súbito um arrepio percorreu o corpo de Maria, estes não eram, pesados, duros, os passos de José, acaso será um maltês à procura de abrigo por uma noite, tinha acontecido antes duas vezes, e se nessas ocasiões Maria não sentira medo, por não ser imaginável que um homem, por mais amargo e infame de coração que fosse, pudesse atrever-se a fazer mal a uma mulher com o filho nos braços, não se lembrou Maria de que mesmo agora mataram os meninos de Belém, alguns, quem sabe, no próprio colo das mães, como no da sua se encontra Jesus, ainda os inocentes sugavam o leite da vida e já a lâmina do punhal lhes feria a delicada pele e penetrava na carne tenra, porém haviam sido os soldados esses assassinos, não uns vagabundos quaisquer, faz a sua diferença, e nada pequena. Não era José, não era soldado à procura de um feito de guerra que não tivesse de partilhar, não era maltês sem pouso nem trabalho, era, sim, novamente em figura de pastor, aquele que em figura de mendigo aparecera uma vez e outra, aquele que falando de si mesmo anunciara ser um anjo, contudo sem dizer de que céu ou inferno. Maria não pensara, primeiro, que pudesse ser ele, agora compreendia que não poderia ser outro. Disse o anjo, A paz seja contigo, mulher de José, seja também a paz com o teu filho, ele e tu afortunados por nesta cova terdes casa, que, não sendo assim, agora estaria um de vós despedaçado e morto, enquanto o outro se acharia a si mesmo vivo mas despedaçado. Disse Maria, Ouvi os gritos. Disse o anjo, Sim, apenas os ouviste, mas um dia os gritos que não deste hão-de gritar por ti, e ainda antes desse dia ouvirás gritar mil vezes a teu lado. Disse Maria, Meu marido foi à estrada ver se os soldados já se foram, não seria bom que ele aqui te encontrasse. Disse o anjo, Que isso não te dê cuidado, ir-me-ei antes que ele chegue, vim só para dizer-te que não voltarás a ver-me tão cedo, tudo o que era necessário que acontecesse aconteceu, faltavam estas mortes, faltava, antes delas, o crime de José. Disse Maria, O crime de José, meu marido não cometeu nenhum crime, é um homem bom. Disse o anjo, Um homem bom que cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele os cometeram também, é que os crimes dos homens bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos que não podem ser perdoados. Disse Maria, Que crime cometeu meu marido. Disse o anjo, Tu o sabes, não queiras ser tão criminosa como ele. Disse Maria, Juro. Disse o anjo, Não jures, ou então jura, se quiseres, que um juramento feito diante de mim é como um sopro de vento que não sabe aonde vai. Disse Maria, Que fizemos nós.

Disse o anjo, Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. Disse Maria, Que podia eu ter feito. Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo, avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que os pais delas as levassem e fugissem, podiam, por exemplo, ir esconder-se no deserto, fugir para o Egipto, à espera de que morresse Herodes, que está por pouco. Disse Maria, Não pensou. Disse o anjo, Não, não pensou, e isso não o desculpa. Disse Maria, chorando, Tu, que és um anjo, perdoa-lhe. Disse o anjo, Não sou anjo de perdões. Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. Disse Maria, Que vamos fazer. Disse o anjo, Vivereis e sofrereis como toda a gente. Disse Maria, E o meu filho. Disse o anjo, Sobre a cabeça dos filhos há-de sempre cair a culpa dos pais, a sombra da culpa de José já escurece a fronte do teu filho. Disse Maria, Infelizes de nós. Disse o anjo, Assim é, e não tereis remédio. Maria curvou a cabeça, apertou mais o filho contra si como para defendê-lo das prometidas desventuras, e quando tornou a olhar já o anjo ali não estava.

Mas desta vez, e ao contrário do que antes tinha sucedido, quando ele se aproximara, não se ouviram passos, Foi-se embora voando, pensou Maria. Depois, levantou-se, foi até à entrada da caverna, se ainda haveria rasto aéreo do anjo, ou já vinha perto José. O nevoeiro dissipara-se, luziam metálicas as primeiras estrelas, da aldeia continuavam a ouvir-se os lamentos. E foi então que um pensamento de presunção desmedida, de talvez pecaminoso orgulho, sobrepondo-se às negras advertências do anjo, fez girar a cabeça de Maria, se a salvação de seu filho não teria sido um gesto de Deus, por força tem um significado escapar alguém à dura morte quando ali ao lado outros que tiveram de morrer já nada mais podem fazer que esperar uma ocasião para ao mesmo Deus perguntarem, Por que foi que nos mataste, e contentarem-se com a resposta, qualquer que seja. Não durou muito o delírio de Maria, no 38

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

instante seguinte já imaginava que poderia estar embalando um filho morto, como agora certamente as mães de Belém, e, para benefício do seu espírito e salvação da sua alma, as lágrimas voltaram-lhe aos olhos, correndo como fontes. Ali estava quando José chegou, ouviu-o vir, mas deixou-se ficar, de nada se lhe dava que ele ralhasse, Maria estava agora chorando com as outras mulheres, todas sentadas em círculo, com os filhos no regaço, à espera da ressurreição. José viu-a chorar, compreendeu e calou-se. Dentro da caverna, José não fez reparo na candeia acesa. As brasas, no chão, tinham-se coberto de uma fina camada de cinza, mas, no interior do lume, entre elas, palpitava ainda, buscando forças, a raiz duma chama. Enquanto ia descarregando o burro, José disse, Já não corremos perigo, foram-se embora os soldados, e nós o melhor que temos a fazer é passar a noite aqui, amanhã partimos antes de o sol nascer, iremos por um atalho, e, onde atalho não haja, por onde calhe. Maria murmurou, Tantos meninos mortos, e José, bruscamente, Como o sabes, foste contá-los, perguntou, e ela, Lembro-me deles, de alguns, Dá antes graças a Deus por teres o teu filho vivo, Darei, E não olhes para mim como se eu tivesse feito algum mal, Não estava a olhar-te, Nem me fales nesse tom que parece de juiz, Ficarei calada, se quiseres, Sim, é melhor que te cales. José atou o burro à manjedoura, ainda havia no fundo alguma palha, a fome do bicho não deve ser grande, de facto este burro tem vivido à tripa-forra, malga cheia e banhos de sol, mas vá-se preparando, que já pouco lhe falta para regressar às duras penas de carga e trabalho. Maria deitou o filho e disse, Vou espevitar o lume, Para quê, A ceia, Não quero aqui lumes que chamem gente, pode passar alguém da aldeia, comemos do que houver e como estiver. Assim fizeram. A candeia de azeite alumiava como um espectro os quatro habitantes da cova, o burro, imóvel como uma estátua, com os beiços sobre a palha mas sem lhe tocar, o menino apenas dormindo, enquanto o homem e a mulher enganavam a fome com uns poucos figos secos. Maria dispôs as esteiras no chão arenoso, lançou sobre elas o lençol e, como todos os dias, esperou que o marido se deitasse. Antes, José foi espreitar novamente a noite, tudo estava em paz na terra e no céu, e da aldeia não vinham outros gritos nem lamentos, agora as sucumbidas forças de Raquel não chegavam para mais que gemer e suspirar, dentro das casas, com a porta e a alma fechadas. José estendeu-se na sua esteira, de repente exausto como nunca estivera em sua vida, de tanto correr, de temer tanto, e nem podia dizer que graças ao seu esforço salvara a vida do filho, os soldados tinham cumprido rigorosamente as ordens recebidas, Matar os meninos de Belém, sem porem, contudo, de sua lavra, acréscimos de diligência na acção militar, como teria sido procurar nas covas ao redor se alguns fugidos aí se teriam escondido, ou então, falha que constituiu gravíssimo erro táctico, se nelas viveriam habitualmente famílias completas. Em geral, a José não o incomodava o hábito de Maria de se deitar só quando ele já tinha adormecido, mas hoje não podia suportar a ideia de estar mergulhado no sono, de rosto nu, sabendo que a mulher velava e o olharia sem piedade. Disse, Não quero que fiques aí, deita-te. Maria obedeceu, foi primeiro verificar, como sempre fazia, se o burro estava bem preso, e depois, suspirando, deitou-se na esteira, fechou os olhos com força, viesse o sono quando pudesse, ela já renunciara a ver. A meio da noite, José teve um sonho. Cavalgava por uma estrada que descia em direcção a uma aldeia de que já se avistavam as primeiras casas, ia de uniforme e com todos os petrechos militares em cima, armado de espada, lança e punhal, soldado entre soldados, e o comandante perguntava-lhe, Tu aonde vais, ó carpinteiro, ao que ele respondia, orgulhoso de conhecer tão bem a missão de que fora incumbido, Vou a Belém matar o meu filho, e quando o disse despertou com um ronco abominável, o corpo crispado, torcido de terror, Maria perguntando-lhe, Que tens, que aconteceu, e ele, tremendo todo, só sabia repetir, Não, não, não, de repente a aflição desatou-se em choro convulsivo, em arrancos que lhe despedaçavam o peito. Maria levantou-se, foi buscar a candeia, iluminou-lhe o rosto, Estás doente, perguntou, mas ele tapava a cara com as mãos, Leva-me isso daqui, mulher, no mesmo instante, ainda soluçando, levantou-se da esteira e correu à manjedoura a ver como estava o filho, Está bem, senhor José, não se preocupe, de facto é uma criança que não dá nenhum trabalho, um bom-serás, um paz-de-alma, um come-e-dorme, aqui repousa, tão tranquilamente como se não tivesse acabado de escapar por milagre à horrível morte, imagine-se, acabar às mãos do próprio pai que lhe deu o ser, já sabemos que esse é o tal destino de que ninguém se livra, mas há maneiras e maneiras. Com o pavor de que o sonho se repetisse, José não tornou à esteira, enrolou-se numa manta e foi sentar-se à entrada da cova, ao abrigo de um pendente rochoso que fazia uma espécie de alpendre natural e, indo agora alta a lua, lançava sobre a abertura uma sombra negríssima que a pálida luz da candeia, dentro, não tocava sequer. O próprio rei Herodes, 39