José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
se por ali passasse, às costas dos escravos, rodeado das suas legiões de bárbaros sedentos de sangue, diria tranquilamente, Não vos incomodeis a procurar, segui para diante, aquilo é pedra e sombra de pedra, nós buscamos carne fresca e vida apenas principiada. José estremeceu ao pensar no sonho, perguntou-se que sentido poderia ele ter, se a verdade, patente à face dos céus que tudo vêem, é que viera correndo como um louco por essa estrada abaixo, via dolorosa só ele sabia quanto, saltando depois pedras e muros, como bom pai acudira a defender seu filho, e eis que o sonho o mostrara com figura e apetites de verdugo, é bem certo o provérbio que avisa não haver nos sonhos firmeza, Isto foi coisa do demónio, pensou, e fez um gesto de esconjuro. Como vindo da garganta duma ave invisível, um assobio passou no ar, também poderia ter sido um sinal de pastor, não fosse a hora ser esta, quando todos os gados estão dormindo e só os cães velam. Porém, a noite, calma e distante, alheada dos seres e das coisas, com essa suprema indiferença que imaginamos ser do universo, ou a outra, absoluta, do vazio que restar, se algo o vazio pode ser, quando estiver cumprido o último fim de tudo, a noite ignorava o sentido e a ordem razoável que parecem reger este mundo nas horas em que ainda acreditamos ter sido ele feito para receber-nos, e à nossa loucura. Na lembrança de José, aos poucos, o sonho terrível tornava-se irreal, absurdo, desmentiam-no esta noite e este luar, desmentia-o a criança a dormir na manjedoura, sobretudo desmentia-o o homem acordado que ele era, senhor de si e, tanto quanto é possível, dos seus pensamentos, agora caridosos e pacíficos, porém também capazes de engendrar um monstro, como a gratidão a Deus porque os soldados deixaram com vida o seu filho querido, por ignorância e desleixo, é certo, eles que a tantos mataram. A mesma noite cobre o carpinteiro José e as mães das crianças de Belém, dos pais não falamos, nem de Maria, que não são para aqui chamados, se bem que não discernamos os motivos duma tal exclusão. As horas passaram calmas e quando a madrugada deu o seu primeiro sinal José levantou-se, foi carregar o burro, e em pouco tempo, aproveitando o derradeiro ar de luar antes de aclarar-se o céu, a família completa, Jesus, Maria e José, pôs-se a caminho, de regresso a Galileia. Deixando por uma hora a casa dos senhores, onde dois meninos haviam sido mortos, a escrava Zelomi foi de manhã à cova, certa de que o mesmo tinha sucedido ao menino que ajudara a nascer. Encontrou-a abandonada, só rastos de passos e de cascos do asno, sob a cinza brasas quase extintas, nenhum vestígio de sangue. Já não está aqui, disse, salvou-se desta primeira morte.
Oito meses tinham já passado sobre o feliz dia em que José chegou a Nazaré com a sua família, sanos e salvos os humanos, apesar dos muitos perigos, menos bem o burro que coxeava um pouco da mão direita, quando houve notícia de que o rei Herodes morrera em Jericó, num dos seus palácios, onde agonizante se tinha recolhido, caídas as primeiras chuvas, para fugir às crueldades do inverno, que em Jerusalém não poupa gente enferma e delicada. Diziam também os avisos que o reino, órfão de tão grande senhor, fora dividido por três dos filhos que lhe restaram depois das razias familiares, a saber, Herodes Filipe, que ficará a governar os territórios que estão a leste da Galileia, Herodes Ântipas, que terá a vara do mando em Galileia e Pereia, e Arquelau, a quem coube Judeia, Samaria e Idumeia. Um dia destes, um almocreve de passagem, desses com jeito para contar histórias, tanto das reais como das inventadas, fará, à gente de Nazaré, o relato do funeral de Herodes, de que tinha sido, jurava, presencial testemunha, Ia posto num sarcófago de ouro todo a brilhar de pedrarias, a carroça, que dois bois brancos puxavam, era também dourada, coberta por panos de púrpura, e de Herodes, também envolto em púrpura, não se distinguia mais que o vulto e uma coroa no lugar da cabeça, os músicos que iam atrás, tocando pífaros, e as carpideiras a seguir aos músicos, é que tinham de respirar o cheiro pestilento que lhes dava em cheio nos narizes, na beira da estrada estava eu e quase me saía o estômago pela boca, e depois vinham os guardas do rei, a cavalo, à frente da tropa, armada de lanças, espadas e punhais, como se fossem para a guerra, passavam e não acabavam de passar, tal uma serpente de que não vemos nem a cabeça nem o rabo e que ao mover-se é como se não tivesse fim, entra-nos no coração o medo, assim eram aquelas tropas marchando atrás de um morto, mas também em direcção à sua própria morte, aquela de cada um, que mesmo quando parece demorar-se sempre acaba por bater-nos à porta, São horas, diz ela, pontual, sem diferença, tanto faz com reis ou com escravos, um que ia lá adiante, carne morta e corrupta, na cabeça do cortejo, outros no couce da procissão, comendo o pó de um exército inteiro, por enquanto vivos, mas já à procura, todos eles, do lugar onde ficarão para sempre. Este almocreve, pela amostra, mais bem estaria, 40