José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
peripatético, passeando sob os capitéis coríntios duma academia do que tocando burros pelos caminhos de Israel, dormindo em caravançarais fedorentos ou contando histórias a campónios, como estes de Nazaré. Entre os assistentes, no largo em frente da sinagoga, estava José, calhou vir a passar por ali e deixou-se ficar a ouvir, em verdade não fora muita a atenção que começara por dar aos pormenores descritivos do cortejo fúnebre, ou sim, alguma lhes tinha dado, mas logo se lhe varreram quando o aedo passou abertamente ao estilo elegíaco, realmente o carpinteiro tinha fundadas e quotidianas razões para ser mais sensível a essa corda da harpa do que a qualquer outra. Aliás, bastava olhar para ele, esta cara não engana, uma coisa era a sua antiga compostura, a gravidade e ponderação com que buscava compensar os seus poucos anos, outra coisa, muito diferente, pior, é esta expressão de amargura que prematuramente lhe está cavando rugas a um lado e a outro da boca, fundas como talhos não cicatrizados. Mas o que há de realmente inquietante no rosto de José é a expressão do seu olhar, se não seria mais exacto dizer a falta de expressão, pois os seus olhos dão ideia de estarem mortos, cobertos de uma poalha de cinza, debaixo da qual, como uma brasa inextinguível, brilhasse um fulgor inflamado de insónia. É verdade, José quase não dorme. O sono é o seu inimigo de todas as noites, com ele tem de lutar como pela própria vida, e é uma guerra que sempre perde, mesmo que alguns combates vença, pois infalivelmente chega um momento em que o corpo exausto se entrega e adormece, para, acto contínuo, ver surgir na estrada um destacamento de soldados, no meio dos quais vai cavalgando José, algumas vezes fazendo molinetes com a espada por cima da cabeça, e é então, quando já o pavor começa a enrolar-se nas defesas conscientes do desgraçado, que o comandante da expedição lhe pergunta, Tu, aonde vais, ó carpinteiro, o pobre não quer responder, resiste com as poucas forças que lhe restam, ainda as do espírito, que o corpo sucumbiu, mas o sonho é mais forte, abre-lhe com mãos de ferro a boca cerrada, e ele, já soluçando e à beira de despertar, tem de dar a horrível resposta, a mesma, Vou a Belém matar o meu filho. Não perguntemos a José se ele se lembra de quantos bois puxaram a carroça de Herodes morto, e se eram brancos ou malhados, agora, voltando a casa, só tem pensamentos para as últimas palavras do conto do almocreve, quando ele disse que aquele mar de gente que ia no funeral, escravos, soldados, guardas reais, carpideiras, tocadores de pífaro, governadores, príncipes, futuros reis, e todos nós, onde quer que estejamos e quem quer que sejamos, não fazemos mais na vida do que procurar o lugar onde iremos ficar para sempre. Nem sempre é assim, cismava José, com uma amargura tão funda que nela não entrara a resignação que dulcifica as maiores dores e apenas podia revestir-se do espírito de renúncia de quem deixou de contar com remédio, nem sempre é assim, repetia, muitos houve que nunca saíram do lugar onde nasceram e a morte foi lá buscá-los, com o que se prova que a única coisa realmente firme, certa e garantida é o destino, é tão fácil, santo Deus, basta ficar à espera de que todo o da vida se cumpra e já poderemos dizer, Era o destino, foi o destino de Herodes morrer em Jericó e ser levado de carroça para o seu palácio e fortaleza de Herodium, mas às crianças de Belém poupou-lhes a morte todas as viagens. E
aquela de José, que ao princípio, vendo os factos pelo lado optimista, parecia fazer parte de um desígnio transcendente para salvar as inocentes criaturas, afinal não serviu de nada, pois o nosso carpinteiro ouviu e calou, foi a correr salvar o filho e deixou os dos outros entregues ao fatal destino, nunca palavra veio tão a propósito. Por isso José não dorme, ou sim dorme e em ânsias desperta, atirado para uma realidade que não o faz esquecer-se do sonho, a ponto de poder-se dizer que, acordado, sonha o sonho de quando dorme, e, dormindo, ao mesmo tempo que busca desesperadamente fugir-lhe, já sabe que é para tornar a encontrá-lo, outra vez e sempre, este sonho é uma presença sentada no limiar da porta que está entre o dormir e o velar, saindo e entrando José tem de enfrentar-se com ela. Entendido já foi que a palavra que define exactamente este novelo é remorso, mas a experiência e a prática da comunicação, ao longo das idades, têm vindo a demonstrar que a síntese não passa duma ilusão, é assim, salvo seja, como uma invalidez da linguagem, não é querer dizer amor e não chegar a língua, é ter língua e não chegar ao amor. Maria está outra vez grávida.
Nenhum anjo em figura de mendigo andrajoso lhe veio bater à porta a anunciar a vinda deste filho, nenhum súbito vento varreu as alturas de Nazaré, nenhuma terra luminosa foi a enterrar ao lado da outra, Maria apenas informou José com as palavras mais simples, Estou grávida, não lhe disse, por exemplo, Olha aqui os meus olhos e vê como brilha neles o nosso segundo filho, e ele não lhe respondeu, Não julgues que não tinha reparado, estava era à espera que tu mo anunciasses, ouviu e calou, apenas disse, Ah, e continuou a empurrar a plaina sobre a tábua, com uma força eficaz mas 41
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indiferente, que o pensamento sabemos nós onde está. Também Maria o sabe, desde que numa noite mais atormentada o marido deixou que o seu segredo, até aí bem guardado, saltasse cá para fora, e ela, afinal, não ficou nem sequer surpreendida, uma coisa assim era inevitável, lembremo-nos do que disse o anjo lá na cova, Ouvirás gritar mil vezes a teu lado. Uma boa mulher diria ao seu marido, Deixa lá, o que fizeste, feito está, e além disso o teu primeiro dever era salvar o teu filho, não tinhas outra obrigação, mas a verdade é que, neste sentido comum, Maria deixou de ser a boa mulher que antes havia demonstrado ser, talvez porque ouvira do anjo aquelas outras e severas palavras que, pelo tom, a ninguém pareceram querer excluir, Não sou anjo de perdões. Se Maria estivesse autorizada a falar com José acerca destas secretíssimas coisas, talvez que ele, sendo tão versado nas escrituras, pudesse meditar sobre a natureza de um anjo que, chegado não se sabe donde, vem dizer-nos que o não é de perdões, declaração ao parecer irrelevante, pois é sabido não serem as criaturas angélicas dotadas do poder de perdoar, que só a Deus pertence. Dizer um anjo que não é anjo de perdões, ou nada significa, ou significa demasiado, vamos por hipótese, que é anjo das condenações, é como se exclamasse, Perdoar, eu, que ideia estúpida, eu não perdoo, castigo. Mas os anjos, por definição, tirando aqueles querubins de espada flamejante que foram postos pelo Senhor a guardar o caminho da árvore da vida para que não voltassem pelos frutos dela os nossos primeiros pais, ou os seus descendentes, que somos nós, os anjos, íamos dizendo, não são polícias, não se encarregam das sujas mas socialmente necessárias tarefas de repressão, os anjos existem para tornar-nos a vida fácil, amparam-nos quando vamos a cair ao poço, guiam-nos no perigoso passo da ponte sobre o precipício, puxam-nos pelo braço quando estamos quase a ser atropelados por uma quadriga sem freio ou por um automóvel sem travões. Um anjo realmente merecedor desse nome até podia ter poupado o pobre José a estas agonias, bastava que aparecesse em sonho aos pais dos meninos de Belém, dizendo a cada um, Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o matar, e desta maneira salvavam-se os meninos todos, Jesus escondido na cova com os seus paizinhos, e os outros a caminho do Egipto, donde só regressariam quando o mesmo anjo, tornando a aparecer aos pais deles, dissesse, Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do menino. Claro que, por meio deste aviso, na aparência benevolente e protector, o anjo estaria a devolver as crianças a lugares, quaisquer que fossem, onde, no tempo próprio, se encontrariam com a morte final, mas os anjos, mesmo podendo muito, como se tem visto, levam consigo as suas limitações de nascença, nisso são como Deus, não podem evitar a morte. Pensando, pensando, José viria talvez a concluir que o anjo da cova era, afinal, um enviado dos poderes infernais, demónio desta vez em figura de pastor, com o que novamente ficaria demonstrada a fraqueza natural das mulheres e as suas viciosas e adquiridas facilitações quando sujeitas ao assalto de qualquer anjo caído. Se Maria falasse, se Maria não fosse esta arca fechada, se Maria não reservasse para si as peripécias mais extraordinárias da sua anunciação, outro galo cantaria a José, outros argumentos viriam reforçar a sua tese, sendo sem dúvida o mais importante de todos o facto de o presumível anjo não ter proclamado, Sou um anjo do Senhor, ou, Venho em nome do Senhor, apenas informou, Sou um anjo, acautelando-se logo, Mas não o digas a ninguém, como se tivesse medo de que se soubesse. Não faltará já por aí quem esteja protestando que semelhantes miudezas exegéticas em nada contribuem para a inteligência de uma história afinal arquiconhecida, mas ao narrador deste evangelho não parece que seja a mesma coisa, tanto no que toca ao passado como no que ao futuro há-de tocar, ser-se anunciado por um anjo do céu ou por um anjo do inferno, as diferenças não são apenas de forma, são de essência, substância e conteúdo, é verdade que quem fez uns anjos fez os outros, mas depois emendou a mão. Maria, tal como seu marido, mas já se sabe que não por idênticas razões, mostra, às vezes, um certo ar absorto, uma expressão de ausência, param-se-lhe as mãos em meio de um trabalho, o gesto interrompido, o olhar distante, de facto nada de estranhável numa mulher neste estado, se não fossem os pensamentos que a ocupam, resumíveis, todos eles, mas com infinitas variações, nesta pergunta, Por que me apareceu o anjo a anunciar o nascimento de Jesus, e agora deste filho não. Maria olha o seu primogénito, que por ali anda gatinhando como fazem todos os crios humanos na sua idade, olha-o e procura nele uma marca distintiva, um sinal, uma estrela na testa, um sexto dedo na mão, e não vê mais do que uma criança igual às outras, baba-se, suja-se e chora como elas, a única diferença é ser seu filho, os cabelos são pretos como os do pai e da mãe, as íris já vão perdendo aquele tom branquiço a que chamamos 42