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Durante uns poucos de anos não houve mais mudanças na família que nascerem novos filhos, além de duas filhas, e terem perdido os pais deles o último viço que lhes ficara da juventude.

Em Maria não havia que estranhar, pois sabe-se como as prenhezes, e de mais sendo tantas, acabam por dar cabo duma mulher, vai-se-lhes aos poucos a beleza e a frescura, se as tinham, emurchecem tristemente a cara e o corpo, basta ver que depois de Tiago nasceu Lísia, depois de Lísia nasceu José, depois de José nasceu Judas, depois de Judas nasceu Simão, depois Lídia, depois Justo, depois Samuel, e se mais algum veio, logo se finou, sem tempo de deixar registo. Os filhos são a alegria dos pais, diz-se, e Maria fazia tudo para parecer contente, mas, tendo de carregar meses e meses no seu cansado corpo tantos frutos gulosos das suas forças, às vezes entrava-lhe na alma uma impaciência, uma indignação à procura da sua causa, mas, sendo o tempo o que era, não pensou em pôr culpas a 43

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

José, e menos ainda àquele Deus supremo que decide da vida e da morte das suas criaturas, a prova é que mesmo um cabelo da nossa cabeça não cai se não for de sua vontade. José entendia pouco dos comos e porquês de se fazerem filhos, isto é, tinha os rudimentos do prático, empíricos, por assim dizer, mas era a própria lição social, o espectáculo do mundo, que reduzia todos os enigmas a uma evidência só, a de que juntando-se macho e fêmea, conhecendo-a portanto ele a ela, resultavam bastante altas as probabilidades de gerar o homem dentro da mulher um filho, que ao cabo de nove meses, raramente sete, nascia completo. A semente do varão, lançada para dentro do ventre da mulher, levava consigo, miniatural e invisível, o novo ser que Deus tinha escolhido para prosseguir o povoamento do mundo que criara, porém isto não acontecia sempre, a impenetrabilidade dos desígnios de Deus, se precisasse de demonstração, encontrava-a no facto de não ser condição suficiente para gerar um filho, embora necessária absolutamente, derramar-se a semente do varão no interior natural da mulher. Deixando-a correr para o chão, como fizera o infeliz Onan, castigado de morte pelo Senhor por não querer fazer filhos na viúva de seu irmão, era certo e garantido que a mulher não engravidaria, mas quantas e quantas ocasiões, como dizia o outro, vai a fonte ao cântaro, e o resultado três vezes nove vinte e sete. Está provado, pois, que foi Deus quem pôs Isaac na escassa linfa que Abraão ainda estava capaz de produzir, e o empurrou para dentro do ventre de Sara, que já nem regras tinha. Vista a questão deste ângulo, digamos, teogenético, pode-se concluir, sem abusar da lógica que a tudo deve presidir neste mundo e nos outros, que o mesmo Deus era quem com tanta assiduidade incitava e estimulava José a frequentar Maria, por essa maneira o tornando em seu instrumento para apagar, por compensação numérica, os remorsos que andava sentindo desde que permitira, ou quisera, sem se dar ao trabalho de pensar nas consequências, a morte dos inocentes meninos de Belém. Mas o mais curioso, e que mostra quanto os desígnios do Senhor, além de obviamente inescrutáveis, são também desconcertantes, é que José, ainda que de um modo difuso, que mal lhe passava ao nível da consciência, supunha agir por conta própria e, acredite quem puder, com a mesma tenção de Deus, isto é, restituir ao mundo, por um afincado esforço de procriação, se não, em sentido literal, as crianças mortas, tal qual tinham sido, ao menos a contagem certa, de maneira a não se encontrar diferença no próximo recenseamento. O remorso de Deus e o remorso de José eram um só remorso, e se naqueles antigos tempos já se dizia, Deus não dorme, hoje estamos em boas condições de saber porquê, Não dorme porque cometeu uma falta que nem a homem é perdoável. A cada filho que José ia fazendo, Deus levantava um pouco mais a cabeça, mas nunca virá a levantá-la por completo, porque as crianças que morreram em Belém foram vinte e cinco e José não viverá anos suficientes para gerar tão grande quantidade de filhos numa só mulher, nem Maria, já tão cansada, já de alma e corpo tão dorida, poderia suportar tanto. O pátio e a casa do carpinteiro estavam cheios de crianças e era como se estivessem vazios. Quando chegou aos cinco anos, o filho de José começou a ir à escola. Todas as manhãs, logo ao nascer do dia, a mãe levava-o ao encarregado da sinagoga, que, sendo os estudos do nível elementar, bastava para o efeito, e era ali, na própria sinagoga, feita sala de aula, que ele e os outros rapazinhos de Nazaré, até aos dez anos, realizavam a sentença do sábio, A criança deve criar-se na Tora como o boi se cria no curral. A lição acabava pela hora sexta, que era o nosso meio-dia de agora, Maria já estava à espera do filho, e, coitada, não podia perguntar-lhe como ia nos aproveitamentos, nem esse simples direito ela tem, pois lá diz a máxima terminante do sábio, Melhor fora que a Lei perecesse nas chamas do que entregarem-na às mulheres, também não devendo ser esquecida a probabilidade de que o filho, já razoavelmente informado sobre o verdadeiro lugar das mulheres no mundo, incluindo as mães, lhe desse uma resposta torta, daquelas capazes de reduzir uma pessoa à insignificância, que tem cada qual a sua, veja-se o caso de Herodes, tanto poder, tanto poder, e se agora formos lá vê-lo nem sequer podemos recitar, Jaz morto e apodrece, agora tudo é bafio, pó, ossos sem conserto e trapos sujos. Quando Jesus entrava em casa, o pai perguntava-lhe, Que foi que aprendeste hoje, e o menino, que tivera a sorte de nascer com uma excelente memória, repetia tintim por tintim, sem falhas, a lição do mestre, foram primeiro os nomes das letras do alfabeto, depois as palavras principais e, mais para diante, frases completas da Tora, passagens inteiras, que José acompanhava com movimentos rítmicos da mão direita, ao mesmo tempo que acenava lentamente a cabeça. Posta de lado, era por esta maneira que Maria ia tomando conhecimento do que não podia perguntar, trata-se de um método antigo das mulheres, aperfeiçoado em séculos e milénios de prática, quando não as autorizam a averiguar por sua conta põem-se a ouvir, e em pouco tempo sabem tudo, 44

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chegando até, o que é o cúmulo da sabedoria, a separar o falso do verdadeiro. No entanto, o que Maria não conhecia, ou não conhecia bastante, era o estranho laço que unia o marido àquele filho, ainda que mesmo a um estranho não passasse despercebida a expressão, misto de doçura e mágoa, que tocava o rosto de José quando falava ao seu primogénito, como se estivesse a pensar, Este filho que eu amo é a minha dor. Maria apenas sabia que os pesadelos de José, como uma sarna da alma, não o largavam, mas essas aflições nocturnas, de tão repetidas, tinham-se já tornado num hábito, como dormir voltado para o lado direito ou acordar com sede a meio da noite. E se Maria, como boa e digna esposa, não deixara de preocupar-se com o seu marido, o mais importante de tudo para ela era ver o filho vivo e são, sinal de que a culpa não fora assim tão grande, ou o Senhor já teria mandado castigo, sem pau nem pedra, como é seu costume, haja vista o caso de Job, arruinado, leproso, e mais sempre havia sido varão íntegro e recto, temente a Deus, a sua pouca sorte foi ter-se tornado em involuntário objecto de uma disputa entre Satanás e o mesmo Deus, cada qual agarrado às suas ideias e prerrogativas. E depois admiram-se que um homem desespere e grite, Pereçam o dia em que nasci e a noite em que fui concebido, converta-se ele em trevas, não seja mencionado entre os dias do ano nem se conte entre os meses, e que a noite seja estéril e não se ouça nela nenhum grito de alegria, é verdade que a Job o compensou Deus restituindo-lhe em dobro o que em singelo lhe tirara, mas aos outros homens, aqueles em nome de quem nunca se escreveu nenhum livro, tudo é tirar e não dar, prometer e não cumprir. Nesta casa do carpinteiro, a vida, apesar de tudo, era tranquila, e na mesa, ainda que sem farturas de prosperidade, não faltara nunca o pão de cada dia e o mais de conduto que ajuda a alma a manter-se agarrada ao corpo. Entre os bens de José e os bens de Job, a única semelhança que ainda assim podia encontrar-se era no número de filhos, sete filhos e três filhas tivera Job, sete filhos e duas filhas tinha José, levando o carpinteiro a vantagem de ter posto menos uma mulher no mundo. Mas Job, antes de Deus lhe ter duplicado os bens, já era proprietário de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas, sem contar os escravos, em quantidade, e José tem aquele burro que conhecemos e nada mais. Na verdade, uma coisa é trabalhar para sustentar duas pessoas apenas, depois uma terceira, mas essa, no primeiro ano, por via indirecta, outra é ver-se à perna com uma ranchada de filhos, que, crescendo o corpo e a necessidade, reclamam alimentos sólidos e a tempo. E como os ganhos de José não davam para admitir pessoal ao seu serviço, o recurso natural estava nos filhos, por assim dizer, à mão de semear, aliás, também por uma simples obrigação de pai, pois já lá diz o Talmude, Do mesmo modo que é obrigatório alimentar os filhos, também é obrigatório ensinar-lhes uma profissão manual, porque não o fazer será o mesmo que tornar o filho num bandido. E se recordarmos o que ensinavam os rabis, O artesão no seu trabalho não deve levantar-se ante o maior doutor, podemos imaginar com que orgulho profissional começava José a instruir os seus filhos mais velhos, um após outro, à medida que chegavam à idade, primeiro Jesus, depois Tiago, depois José, depois Judas, nos segredos e tradições da arte carpinteira, atento ele, também, à antiga sentença popular que assim reza, O trabalho do menino é pouco, mas quem o desdenha é louco, foi o que depois veio a chamar-se trabalho infantil. A José pai, quando ao trabalho voltava depois da comida da tarde, ajudavam-no os seus próprios filhos, exemplo verdadeiro duma economia familiar que poderia vir a dar excelentes frutos até aos dias de hoje, porventura mesmo uma dinastia de carpinteiros, se Deus, que sabe o que quer, não tivesse querido outra coisa.