José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
David, à impedimenta rústica, de benévolos pastores e não de guerreiros convictos. Porém, um homem, seja ou não judeu, habitua-se à guerra como dificilmente é capaz de habituar-se à paz, mormente se encontrou um chefe e, mais importante do que acreditar nele, acredita no que ele acredita. Este chefe, o chefe da revolta contra os romanos, principiada quando o primogénito de José ia nos seus seus onze anos, tinha por nome Judas e nascera na Galileia, daí que lhe chamassem, segundo o costume do tempo, Judas Galileu ou Judas de Galileia. Realmente, não devemos estranhar identificações tão primitivas, aliás muito comuns, é fácil encontrar, por exemplo, um José de Arimateia, um Simão de Cirene ou Cireneu, uma Maria Madalena ou de Magdala, e, se o filho de José viver e prosperar, não tenhamos dúvidas de que lhe chamarão, simplesmente, Jesus de Nazaré, ou Jesus Nazareno, ou até, mais simplesmente ainda, pois nunca se sabe aonde pode chegar a identificação duma pessoa com o lugar onde nasceu ou, neste caso, onde se fez homem ou mulher, Nazareno. Porém, isto são futurações, o destino, quantas vezes será preciso dizê-lo, é um cofre como não existe outro, que ao mesmo tempo está aberto e fechado, olhamos dentro dele, podemos ver o que já aconteceu, a vida passada, tornada destino cumprido, mas do que está para suceder não alcançamos mais do que uns pressentimentos, umas intuições, como no caso deste evangelho, que não estaria a ser escrito se não fossem aqueles avisos extraordinários, indiciadores, talvez, de um destino maior que simples vida. Retomando o fio à meada, a rebelião, como íamos dizendo, estava na massa do sangue da família de Judas Galileu, já o pai dele, o velho Ezequias, andara na peleja, com tropa sua, quando das revoltas populares que, depois da morte de Herodes, eclodiram contra os presumíveis herdeiros, antes que Roma tivesse confirmado a legitimidade da partilha do reino e a autoridade dos novos tetrarcas. São coisas que não se sabem explicar, como, sendo as pessoas feitas das mesmas humaníssimas matérias, esta carne, estes ossos, este sangue, esta pele e este riso, este suor e esta lágrima, vemos que saem uns cobardes e outros sem medo, uns de guerra e outros de paz, por exemplo, o mesmo que serviu para fazer um José serviu para fazer um Judas, e enquanto este, filho do seu pai e pai de seus filhos, seguindo o exemplo de um e dando o exemplo aos outros, se tirou da sua tranquilidade para ir defender em batalha os direitos de Deus, o carpinteiro José ficou em casa, com os seus nove filhos pequenos e a mãe deles, agarrado à bancada e à necessidade de ganhar o pão para hoje, que o dia de amanhã não se sabe a quem pertence, há quem diga que a Deus, é uma hipótese tão boa como a outra, a de não pertencer a ninguém, e tudo isso, ontem, hoje e amanhã, não serem mais do que diferentes nomes da ilusão. Mas desta aldeia de Nazaré, alguns homens, sobretudo dos mais novos, foram juntar-se à guerrilha de Judas o Galileu, em geral desapareciam sem prevenir, sumiam-se, por assim dizer, de uma hora para outra, tudo ficava no íntimo segredo das famílias, e a regra do sigilo, tácita, era a tal ponto imperiosa que ninguém se lembraria de fazer perguntas, Onde está Natanael, há dias que não o vejo, se Natanael deixara de comparecer na sinagoga ou a fila dos ceifeiros, no campo, ficara mais curta de um homem, os demais procediam como se Natanael nunca tivesse existido, não era bem assim, algumas vezes sabia-se que Natanael entrara na aldeia, sozinho pela noite escura, e que voltara a sair ao primeiro sinal de madrugada, não havia outro indício desta entrada e saída do que o sorriso da mulher de Natanael, mas em verdade há sorrisos que dizem tudo, uma mulher está parada, com os olhos perdidos no vago, o horizonte, ou apenas a parede na sua frente, e de súbito começa a sorrir, um sorriso lento, reflexivo, como uma imagem emergindo da água e oscilando na superfície inquieta, só um cego, por não poder vê-lo, pensaria que a mulher de Natanael dormiu outra noite sem o seu marido. E o coração humano é de tal maneira estranho, que algumas mulheres que beneficiavam da contínua presença dos seus homens, punham-se a suspirar ao imaginar aqueles encontros e, alvoroçadas, rodeavam a mulher de Natanael como fazem as abelhas a uma flor transbordante de pólen. Não era este o caso de Maria, com aqueles nove filhos, e um marido que quase todas as noites gemia e gritava de angústia e pavor, ao ponto de fazer acordar as crianças, que por sua vez desatavam a chorar. Com o passar do tempo, melhor ou não tanto, chegaram a habituar-se, mas o mais velho, porque alguma coisa, mas não ainda um sonho, o assustava no meio do seu próprio sono, acordava sempre, ao princípio ainda perguntava à mãe, Que tem o pai, e ela respondia como quem não dá importância, São sonhos maus, não podia dizer ao filho, Teu pai estava a sonhar que ia com os soldados de Herodes na estrada de Belém, Qual Herodes, O pai deste que nos governa, E era por isso que gemia e gritava, Por isso era, Não compreendo que ser soldado de um rei que já morreu traga sonhos ruins, Teu pai nunca foi soldado de Herodes, o seu ofício sempre foi de 47
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
carpinteiro, Então por que sonha, As pessoas não escolhem os sonhos que têm, São, pois, os sonhos que escolhem as pessoas, Nunca o ouvi dizer a ninguém, mas assim deve ser, Porquê os gritos, minha mãe, porquê os gemidos, É que teu pai todas as noites sonha que te vai matar, está visto que Maria não podia chegar a tais extremos, revelar a causa do pesadelo do marido justamente a quem tinha, nesse pesadelo, como Isaac, filho de Abraão, o papel de vítima nunca consumada, mas condenada inexoravelmente. Um dia, Jesus, numa ocasião em que ajudava o pai a juntar as partes duma porta, cobrou-se de ânimo e fez-lhe a pergunta, e ele, depois de um silêncio demorado, sem levantar os olhos, disse isto apenas, Meu filho, já conheces os teus deveres e obrigações, cumpre-os a todos e encontrarás justificação diante de Deus, mas cuida também de procurar na tua alma que deveres e obrigações haverá mais, que não te tenham sido ensinados, Esse é o teu sonho, pai, Não, é só o motivo dele, ter um dia esquecido um dever, ou ainda pior, Pior, como, Não pensei, E o sonho, O sonho é o pensamento que não foi pensado quando devia, agora tenho-o comigo todas as noites, não posso esquecê-lo, E que era o que devias ter pensado, Nem tu podes fazer-me todas as perguntas, nem eu posso dar-te todas as respostas. Trabalhavam no pátio, a uma sombra, porque o tempo era de verão e o sol queimava. Por ali perto brincavam os irmãos de Jesus, excepto o mais novinho, que estava dentro de casa, ao colo da mãe a mamar. Tiago também estivera ajudando, mas cansara-se, ou aborrecera-se, não admira, nestas idades um ano faz muita diferença, a Jesus já pouco falta para entrar na maturidade do conhecimento religioso, terminou a sua instrução elementar, agora, além de prosseguir o estudo da Tora, ou lei escrita, inicia-se na lei oral, bem mais árdua e complexa. Assim se entenderá melhor que, tão jovem, possa ter mantido com o pai esta séria conversação, usando as palavras com propriedade e argumentando com ponderação e lógica. Jesus está quase a fazer doze anos, dentro de pouco tempo será um homem, e então talvez possa voltar ao assunto agora deixado em suspenso, se José estiver disposto a reconhecer-se culpado diante do próprio filho, como Abraão também não fez com seu filho Isaac, nesse dia tudo foi reconhecer e louvar o poder de Deus. Mas é bem verdade que a recta escrita de Deus só em pouco coincide com as tortas linhas dos homens, veja-se o dito caso de Abraão, a quem apareceu o anjo a dizer, no último momento, Não levantes a mão sobre o menino, e veja-se o caso de José, que tendo Deus, em lugar do anjo, posto no seu caminho um cabo e três soldados faladores, não aproveitou o tempo que tinha para salvar da morte os meninos de Belém. Porém, se os bons começos de Jesus não se perderem na mudança da idade, talvez que ele venha a querer saber por que salvou Deus a Isaac e nada fez para salvar os tristes infantes que, inocentes de pecado como o filho de Abraão, não encontraram piedade perante o trono do Senhor. E, assim sendo, Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar contigo toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens. Enquanto, de portas adentro, as da casa e as da alma, o carpinteiro José e seu filho Jesus debatiam, entre o que diziam e o que calavam, estas altas questões, a guerra contra os romanos continuava. Durava há mais de dois anos, e às vezes chegavam a Nazaré fúnebres notícias, morreu Efraim, morreu Abiezer, morreu Neftali, morreu Eleazar, porém não se sabia com segurança onde estavam os seus corpos, entre duas pedras da montanha, no fundo dum desfiladeiro, levado na corrente do rio, à sombra inútil duma árvore. Bem podem os que ficaram em Nazaré lavar-se as mãos e dizer, mesmo não podendo celebrar o funeral dos que morreram, As nossas mãos não derramaram este sangue e os nossos olhos não o viram. Mas também chegavam notícias de grandes vitórias, os romanos expulsos da cidade de Séforis, ali perto, apenas a duas horas de Nazaré, andando, extensas partes da Judeia e da Galileia onde o exército inimigo não ousava entrar, e na própria aldeia de José, há mais de um ano que não se vê um soldado de Roma. Quem sabe, mesmo, se não terá sido esta a causa de o vizinho do carpinteiro, o curioso e prestável Ananias de quem não tínhamos precisado de voltar a falar, ter, por estes dias, entrado aqui no pátio com ar misterioso, dizendo, Vem comigo fora, e com bons motivos o pede, que nas casas deste povo, por tão pequenas serem, não é possível a privacidade, onde está um estão todos, à noite quando dormem, de dia seja qual for a circunstância e a ocasião, é uma vantagem para o Senhor Deus, que assim com mais facilidade poderá reconhecer os que são seus no dia do Juízo Final. Não estranhou José o pedido, mesmo quando Ananias acrescentou sigiloso, Vamos ao deserto, ora nós já sabemos que o deserto não é só aquilo que a nossa mente se acostumou a mostrar-nos quando lemos ou ouvimos a palavra, uma extensão enorme de areia, um mar de dunas ardentes, desertos, como aqui também são entendidos, há-os até na verde Galileia, são os 48