José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
vida como se diante delas é que devesse, doravante, pronunciar todas as palavras e cometer todos os actos, porém, no instante seguinte entrou-lhe no coração um sentimento de puro terror porque compreendera que se havia esquecido de Deus. Em casa de Ananias foram encontrar Maria que tentava consolar a lacrimosa Chua, mas o choro parou assim que os homens entraram, não que Chua tivesse deixado de chorar, a questão é que as mulheres aprenderam com a dura experiência a engolir as lágrimas, por isso é que dizemos, Tanto choram como riem, e não é verdade, em geral estão a chorar para dentro. Não para dentro, mas com todas as ânsias da alma e todas as lágrimas dos olhos, chorou a mulher de Ananias no dia em que ele partiu. Uma semana depois vieram buscá-la aqueles seus parentes que viviam na borda do mar. Maria acompanhou-a até à saída da aldeia, e aí se despediram. Chua, então, já não chorava, mas os seus olhos nunca mais voltarão a estar secos, que esse é o choro que não tem remédio, aquele lume contínuo que queima as lágrimas antes que elas possam surgir e rolar pelas faces.
Assim foram passando os meses, as notícias da guerra continuavam a chegar, ora boas, ora más, mas enquanto as notícias boas nunca iam além dumas vagas alusões a vitórias que sempre resultavam pequenas, as más notícias, essas, já começavam a falar de pesadas e sangrentas derrotas do exército guerrilheiro de Judas o Galileu. Um dia trouxeram notícia de que morrera Baldad numa emboscada de guerrilha que os romanos tinham surpreendido, assim se virando o feitiço contra o feiticeiro, tinha havido muitos mortos, mas de Nazaré só aquele. E outro dia alguém veio dizer que ouvira dizer a quem tinha ouvido dizer que Varo, o governador romano da Síria, vinha aí com duas legiões de tropas para acabar de uma vez com a intolerável insurreição, que levava já três anos. Esta mesma maneira vaga de anunciar, Vem aí, pela sua imprecisão, difundia entre a gente um sentimento insidioso de temor, como se a qualquer momento fossem aparecer na volta do caminho, alçadas à cabeça da coluna punitiva, as temíveis insígnias da guerra e a sigla com que aqui se homologam e selam todas as acções, SPQR, o senado e o povo de Roma, em nome de coisas tais, letras, livros e bandeiras, é que as pessoas se andam a matar umas às outras, como será também o caso doutra conhecida sigla, INRI, Jesus de Nazaré Rei dos Judeus, e suas sequelas, porém não nos ponhamos já a antecipar, deixemos que o preciso tempo passe, por agora, e causa uma impressão de estranheza sabê-
lo e poder dizê-lo, como se doutro mundo estivéssemos a falar, ainda não morreu ninguém por causa dela. Por toda a parte se anunciam grandes batalhas, prometendo os de mais robusta fé que não passará este ano sem que os romanos sejam expulsos da santa terra de Israel, mas também não faltam outros que, ouvindo estas abondanças, abanam tristemente a cabeça e começam a deitar contas ao desastre que se aproxima. E assim foi. Durante algumas semanas depois de ter corrido a notícia do avanço das legiões de Varo, nada aconteceu, com o que lucraram os guerrilheiros para redobrar as acções de flagelação da dispersa tropa com que vinham lutando, mas a razão estratégica dessa aparente inactividade não tardou a ser conhecida, quando os esculcas do Galileu passaram palavra de que uma das legiões havia seguido para o sul, em manobra de envolvimento, ao longo do rio Jordão, rodando depois sobre a direita à altura de Jericó, para, tal uma rede lançada à água e puxada por mão sábia, recomeçar o movimento em direcção ao norte, como uma espécie de laçadeira colhendo aqui e além, enquanto a outra legião, seguindo um método semelhante, se movia para o sul. Poderíamos chamar-lhe a táctica da tenaz se não fosse mais o movimento concertado de duas paredes que se vão aproximando e atropelando aqueles que não podem escapar, mas que guardam para o instante final o efeito maior, o esmagamento. Nos caminhos, vales e cabeços da Judeia e da Galileia, o avanço das legiões ia ficando marcado pelas cruzes onde morriam, cravados de pés e mãos, os combatentes de Judas, aos quais, para mais depressa os rematarem, se partiam, a golpes de malho, as tibias. Os soldados entravam nas aldeias, revistavam casa por casa procurando suspeitos, que para levar estes homens ao crucifixo não eram precisas mais certezas do que as que pode oferecer, querendo, a simples suspeita. Esses infelizes, com perdão da triste ironia, ainda tinham sorte, porque, sendo crucificados por assim dizer à porta de casa, logo acudiam os parentes a retirá-los depois de haverem expirado, e então era um espectáculo lastimoso de ver e ouvir, os choros das mães, das esposas e das noivas, os gritos das pobres crianças que ficavam sem pai, enquanto o martirizado homem era descido da cruz com mil cautelas, pois não há nada mais pungente que a queda desamparada dum corpo morto, tanto que até aos próprios vivos parece doer o choque. Depois o crucificado era levado ao 50
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túmulo, onde ficava esperando o seu dia de ressurreição. Mas outros havia que, tendo sido apanhados em combate travado nas montanhas ou outros sítios desabitados, eram deixados ainda vivos pelos soldados e, agora sim, no mais absoluto de todos os desertos, o da morte solitária, ali ficavam, cozidos lentamente pelo sol, expostos às aves carniceiras, e, passando o tempo, desgarravam-se-lhes as carnes e os ossos, reduzidos a um mísero despojo sem forma que à própria alma repugna. Pessoas curiosas, senão cépticas, já noutras ocasiões convocadas a contrariar o sentimento de resignação com que em geral são recebidas as informações constantes de evangelhos como este, gostariam de saber como foi possível aos romanos crucificarem tão grande quantidade de judeus, mormente nas enormes áreas desarborizadas e desérticas que por aqui abundam, onde, e é quando é, não se consegue encontrar mais do que umas raquíticas e ralas vegetações, que decididamente não aguentariam nem a crucificação de um espírito. Esquecem essas pessoas que o exército romano é um exército moderno, para o qual logística e intendência não são palavras vãs, o abastecimento de cruzes, ao longo desta campanha, tem sido amplamente assegurado, veja-se a extensa récua de burros e mulas que segue no couce da legião, transportando as peças soltas, a crux e o patibulum, o pau vertical e a travessa, que, chegando ao sítio, é só pregar os braços abertos do condenado à travessa, içá-lo até ao alto do pau espetado no chão, e depois, tendo-o feito primeiro encolher as pernas para um lado, fixar com um único cravo de palmo, à crux, os dois calcanhares sobrepostos. Qualquer carrasco da legião dirá que esta operação, só aparentemente complexa, é afinal mais difícil de explicar que de executar. A hora é de desastre, tinham razão os pessimistas. Do norte para o sul e do sul para o norte, há gente em pânico que vem fugindo à frente das legiões, alguns sobre quem poderiam recair suspeitas de terem ajudado os guerrilheiros, outros movidos pelo puro medo, já que, como sabemos, não é preciso ter culpa para ser-se culpado. Ora, um desses fugitivos, detendo por instantes a retirada, veio bater à porta do carpinteiro José para lhe dizer que o seu vizinho Ananias se encontrava em Séforis, maltratado de golpes de espada, e que, este era o recado, Está a guerra perdida e eu não escapo, já podes mandar avisar minha mulher para que venha tomar conta do que lhe pertence, Nada mais, perguntou José, Outra palavra não disse, respondeu o mensageiro, E tu, por que não o trouxeste contigo, se por aqui tinhas de passar, No estado em que ele está atrasar-me-ia o passo, e eu tenho a minha própria família, que devo proteger em primeiro lugar, Em primeiro lugar, sim, mas não apenas, Que queres dizer, vejo-te aí rodeado de filhos, se não foges com eles é porque não estás em perigo, Não te demores, vai, e que o Senhor te acompanhe, o perigo é onde o Senhor não estiver, Homem sem fé, o Senhor está em toda a parte, Sim, mas às vezes não olha para nós, e tu não fales de fé, porque a ela faltaste ao abandonares o meu vizinho, Por que não vais tu buscá-lo, então, Irei. Foi isto pelo meio da tarde, o dia estava bonito, de sol, com umas nuvens muito brancas, esparsas, que vogavam pelo céu fora como barcas que não precisassem de governo. José foi desprender o burro, chamou a mulher e disse-lhe, sem outras explicações, Vou a Séforis buscar o vizinho Ananias, que não pode andar por seu pé.