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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

começa a apodrecer. Ananias, primeiro, não reconheceu José, a luz da enfermaria não ajuda, a dos seus olhos ainda menos, mas sabe definitivamente que é ele quando o carpinteiro repete, agora num tom diferente, talvez de amor, Ananias, os olhos do velho inundam-se de lágrimas, diz uma vez, diz duas vezes, És tu, és tu, que vieste cá fazer, que vieste cá fazer, e quer levantar-se sobre um cotovelo, estender o braço, mas as forças faltam-lhe, o corpo descai, toda a cara se lhe contorce de dor. Venho buscar-te, disse o carpinteiro, tenho o burro lá fora, estaremos em Nazaré num abrir e fechar de olhos, Não devias ter vindo, os romanos não tardam, e eu não posso sair daqui, esta é a minha última cama de vivo, e com as mãos trémulas abriu a túnica rasgada. Por baixo de uns panos ensopados em vinho e azeite percebiam-se os ferozes lábios de duas feridas longas e fundas, no mesmo instante um odor adocicado e nauseabundo de podridão fez estremecer as narinas de José, que desviou os olhos. O

velho tapou-se, deixou cair os braços ao lado como se o esforço o tivesse esgotado, Já vês que não me podes levar, caíam-se-me as tripas da barriga se me levantasses daqui, Com uma faixa apertada à volta do corpo e indo devagar, insistiu José, porém já sem nenhuma convicção, era evidente que o velho, supondo que seria capaz de subir para o burro, iria ficar-se pelo caminho. Ananias fechara outra vez os olhos e foi sem os abrir que disse, Vai-te embora, José, vai para casa, olha que os romanos não tardam aí, Os romanos não virão atacar de noite, descansa, Vai para casa, vai para casa, suspirou Ananias, e José disse, Dorme. Toda a noite José velou. Alguma vez, com o espírito flutuando nas primeiras névoas de um sono que temia e a que por esta razão de agora igualmente resistia, José perguntou a si mesmo por que viera a este sítio, se era verdade que nunca tinha havido entre ele e o vizinho verdadeira amizade, pela diferença das idades, em primeiro lugar, mas também por uma certa maneira mesquinha de ser de Ananias e da mulher, curiosos, metediços, por um lado prestáveis, mas logo dando a ideia de ficarem à espera duma compensação cujo valor só a eles competiria fixar. É o meu vizinho, pensou José, e não encontrava melhor resposta para as suas dúvidas, é o meu próximo, um homem que está a morrer, fechou os olhos, não é que não queira ver-me, o que não quer é perder nenhum movimento da morte que se aproxima, e eu não posso deixá-lo sozinho. Tinha-se sentado no estreito espaço entre a esteira onde jazia Ananias e outra onde estava um rapaz novo, pouco mais velho que seu filho Jesus, o pobre moço gemia baixinho, murmurava palavras incompreensíveis, a febre rebentara-lhe os lábios. José segurou-lhe na mão para acalmá-lo, no mesmo momento em que também a mão de Ananias, tacteando cega, parecia procurar algo, uma arma para se defender, outra mão para apertar, e foi assim que ficaram os três, um vivo entre dois moribundos, uma vida entre duas mortes, enquanto o tranquilo céu nocturno ia fazendo rodar as estrelas e os planetas, lá para diante trazendo do outro lado do mundo uma lua branca, refulgente, que boiava no espaço e cobria de inocência toda a terra de Galileia. Muito tarde, José saiu do torpor em que, sem querer, caíra, despertou com um sentimento de alívio porque desta vez não tinha sonhado com a estrada de Belém, abriu os olhos e viu, Ananias estava morto, de olhos abertos também, no último instante não suportara a visão da morte, a mão dele apertava a sua com tanta força que lhe comprimia os ossos, então, para poder libertar-se da angustiadora sensação, soltou a mão que segurava a do rapaz, e, ainda num estado de meia consciência, percebeu que a febre deste baixara. José olhou para fora, pela porta aberta, a lua já se pusera, agora a luz era a da madrugada, imprecisa e pardacenta. No armazém moviam-se vagos vultos, eram os feridos que podiam levantar-se, iam olhar o primeiro anúncio do dia, podiam ter perguntado uns aos outros ou directamente ao céu, Que verá este sol que vai nascer, alguma vez aprenderemos a não fazer perguntas inúteis, mas enquanto esse tempo não chega aproveitemos para perguntar-nos, Que verá este sol que vai nascer. José pensou, Vou-me embora, aqui já não posso nada, havia também nas suas palavras um tom interrogativo, tanto assim que prosseguiu, Posso levá-

lo para Nazaré, e a lembrança pareceu-lhe de tal maneira óbvia que acreditou que para isso mesmo é que viera, encontrar Ananias vivo e transportá-lo morto. O rapaz pediu água. José chegou-lhe um púcaro de barro à boca, Como te sentes, perguntou, Menos mal, Pelo menos, parece que se te baixou a febre, Vou ver se consigo levantar-me, disse o rapaz, Tem cuidado, e José reteve-o, ocorrera-lhe de súbito outra ideia, a Ananias não podia fazer-lhe nada mais que o enterro em Nazaré, mas, ao rapaz, donde quer que ele fosse, ainda podia salvar-lhe a vida, tirá-lo do fúnebre depósito, um vizinho, por assim dizer, tomava o lugar doutro vizinho. Já não sentia pena de Ananias, apenas um corpo vazio, a alma mais e mais distante de cada vez que o olhava. O rapaz parecia perceber que algo bom para si estaria talvez a acontecer, os olhos brilharam-lhe, mas não chegou a fazer nenhuma pergunta porque 53