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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

José já saíra, ia buscar o burro, trazê-lo para dentro, abençoado seja o Senhor que sabe pôr na cabeça dos homens tão excelentes ideias. O burro não estava lá. Da sua presença não ficara mais que uma ponta de corda atada ao barrote, o ladrão não perdera tempo a desatar o simples nó, uma faca afiada fez o trabalho mais depressa.

As forças de José cederam de golpe diante do desastre. Como um vitelo fulminado, daqueles que vira sacrificar no Templo, caiu de joelhos e, com as mãos contra o rosto, soltaram-se-lhe de uma vez as lágrimas, todas aquelas lágrimas que há treze anos vinha acumulando, à espera do dia em que pudesse perdoar-se a si mesmo ou tivesse de enfrentar a sua definitiva condenação. Deus não perdoa os pecados que manda cometer. José não voltou ao armazém, compreendera que o sentido das suas acções se perdera para sempre, nem o mundo, o próprio mundo, tinha já sentido, o sol estava a nascer, e para quê, Senhor, no céu havia mil pequenas nuvens, espalhadas em todas as direcções como as pedras do deserto. Vendo-o ali, a enxugar as lágrimas na manga da túnica, qualquer pessoa pensaria que lhe tinha morrido um parente entre os feridos recolhidos no armazém, quando o certo era que José acabara de chorar as suas últimas lágrimas naturais, as da dor da vida. Quando, depois de ter vagueado pela cidade durante mais de uma hora, ainda com uma última esperança de encontrar o animal roubado, se dispunha a regressar a Nazaré, prenderam-no os soldados romanos que tinham cercado Séforis. Perguntaram-lhe quem era, Sou José filho de Heli, donde vinha, De Nazaré, ia para onde, Para Nazaré, que fazia em Séforis neste dia, Alguém me disse que um vizinho meu estava aqui, quem era esse vizinho, Ananias, se o tinha encontrado, Sim, onde o encontrara, Num armazém com outros, outros quê, Feridos, em que parte da cidade, Além. Levaram-no para uma praça onde já estavam uns quantos homens, doze, quinze, sentados no chão, alguns deles com ferimentos visíveis, e disseram-lhe, Senta-te com esses. José, percebendo que os homens que ali estavam eram rebeldes, protestou, Sou carpinteiro e gente de paz, e um dos que estavam sentados disse, Não conhecemos este homem, mas o sargento que comandava a guarda dos prisioneiros não quis saber, com um empurrão fez cair José no meio dos outros, Daí só sais para ires morrer. No primeiro instante, o duplo choque, da queda e da sentença, deixou José sem pensamentos. Depois, quando se recompôs, viu que dentro de si havia uma grande tranquilidade, como se tudo isto fosse um sonho mau do qual tivesse a certeza de que viria a acordar e portanto não valia a pena atormentar-se com as ameaças, pois elas se dissipariam assim que abrisse os olhos. Então lembrou-se de que quando sonhava com a estrada de Belém também tinha a certeza de acordar, e no entanto, de repente começou a tremer, a brutal evidência do seu destino tornara-se-lhe enfim clara, Vou morrer, e vou morrer inocente. Sentiu que uma mão se pousava no seu ombro, era o vizinho, Quando vier o comandante da coorte dizemos-lhe que não tens nada que ver connosco, e ele manda-te em paz, E vocês, Os romanos têm-nos crucificado a todos, quando nos apanham, com certeza não será diferente desta vez, Deus vos salvará, Deus salva as almas, não salva os corpos. Trouxeram mais homens, dois, três, a seguir um grupo numeroso, de uns vinte. À volta da praça tinham-se juntado habitantes de Séforis, mulheres e crianças de mistura com os varões, ouvia-se-lhes o murmúrio inquieto, mas dali não podiam sair enquanto os romanos não autorizassem, já muita sorte tinham por não serem suspeitos de andar com os rebeldes. Ao cabo de algum tempo foi trazido outro homem, os soldados que o traziam disseram, Não há mais por agora, e o sargento gritou, De pé, todos. Julgaram os presos que era o comandante da coorte que se aproximava, o vizinho de José disse, Prepara-te, queria ele dizer, Prepara-te para ficares livre, como se para a liberdade fosse preciso preparação, mas se alguém vinha não era o comandante da coorte, nem chegou a saber-se quem fosse, pois que o sargento, sem pausa, dera em latim uma ordem aos soldados, faltou dizer que tudo quanto até agora tem sido dito por romanos em latim o foi sempre, que não se rebaixam os filhos da Loba a aprender línguas bárbaras, para isso lá estão os intérpretes, porém, neste caso, sendo a conversa dos militares uns com os outros, não se necessitava tradução, rapidamente os soldados rodearam os prisioneiros, Marche, e o cortejo, levando os condenados à frente, seguidos pela população, encaminhou-se para fora da cidade. Ao ver-se levado assim, sem ter a quem pedir mercê, José ergueu os braços e deu um grito, Salvai-me que eu não sou destes, salvai-me que estou inocente, mas veio um soldado e com o coto da lança deu-lhe uma estocada nas costas que quase o atirou ao chão. Estava perdido. Desesperado, odiou Ananias, por culpa de quem ia morrer, mas este mesmo sentimento, depois de o ter queimado todo por dentro, desapareceu como 54

José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

viera, deixando o seu ser como um deserto, agora era como se pensasse, Não há mais para onde ir, engano seu, que já falta pouco para lá chegar. Ainda que custe a crer, a certeza da morte próxima acalmou-o. Olhou à sua volta os companheiros de martírio, caminhavam serenos, alguns, sim, sucumbidos, mas os outros de cabeça levantada. Eram, na sua maioria, fariseus. Então, pela primeira vez, José lembrou-se dos filhos, também teve um pensamento, fugaz, para a mulher, mas eram tantos aqueles rostos e nomes que a sua esvaída cabeça, sem dormir, sem comer, foi deixando pelo caminho uns atrás de outros, até não lhe restar mais que Jesus, seu filho primeiro nascido, seu castigo derradeiro. Lembrou-se de como tinham conversado sobre o seu sonho, de como lhe tinha dito, Nem tu podes fazer-me todas as perguntas, nem eu posso dar-te todas as respostas, agora chegava ao fim o tempo de responder e perguntar. Fora da cidade, numa pequena elevação de terreno que a dominava, estavam cravados verticalmente, em filas de oito, quarenta grossos paus, robustos quanto bastava para aguentar um homem. Ao pé de cada um deles, no chão, havia um barrote comprido, o suficiente para receber um homem de braços abertos. À vista dos instrumentos do suplício, alguns dos condenados tentaram escapar-se, mas os soldados sabiam do seu ofício, de gládio em punho cortaram-lhes a fuga, um dos rebeldes tentou espetar-se na arma, porém sem resultado, que logo foi arrastado para a primeira crux. Começou então o vagaroso trabalho de cravar os condenados cada um ao seu barrote e içá-los sobre a grande estaca vertical. Ouviam-se por todo o campo gritos e gemidos, a gente de Séforis chorava perante o triste espectáculo a que, para escarmento, era obrigada a assistir. Aos poucos foram-se formando as cruzes, cada uma com seu homem pendurado, de pernas encolhidas, como antes já foi dito, perguntamo-nos porquê, talvez por uma ordem de Roma visando a racionalização do trabalho e a economia do material, qualquer pessoa pode observar, mesmo sem experiência de crucificações, que a crux, sendo para homem completo, não reduzido, teria de ser alta, logo maior dispêndio de madeira, maior peso a transportar, maiores dificuldades de manejo, ainda se acrescentando a circunstância, proveitosa aos condenados, de que, ficando-lhes os pés mesmo ao rasinho do chão, facilmente podiam ser despregados, sem necessidade de escadas de mão, passando por assim dizer directamente dos braços da cruz para os braços da família, se a tinham, ou dos coveiros de ofício, que os não deixariam ali ao abandono. José foi o último a ser crucificado, calhou assim, por isso teve de assistir, um por um, ao tormento dos seus trinta e nove companheiros desconhecidos, e, quando a sua vez chegou, perdida já de todo a esperança, não teve força nem para repetir os protestos da sua inocência, falhou talvez a oportunidade de salvar-se quando o soldado que tinha o martelo disse ao sargento, Este é o que se dizia sem culpa, o sargento hesitou um instante, exactamente o instante em que José deveria ter gritado, Estou inocente, mas não, calou-se, desistiu, então o sargento olhou, terá pensado que a precisão simétrica sofreria se a última crux não fosse usada, que quarenta é uma conta redonda e perfeita, fez um gesto, os cravos foram espetados, José gritou e continuou a gritar, depois levantaram-no em peso, suspenso dos pulsos atravessados pelos ferros, e depois mais gritos, o prego comprido que lhe furava os calcanhares, oh meu Deus, este é o homem que criaste, louvado sejas, já que não é lícito maldizer-te. De repente, como se alguém tivesse dado sinal, os habitantes de Séforis romperam num clamor aflito, mas não foi o dó dos condenados, por toda a cidade estavam a rebentar incêndios, as chamas, rugindo, como um rastilho de fogo grego, devoravam as casas dos moradores, os edifícios públicos, as árvores dos pátios interiores. Indiferentes ao fogo que outros soldados andavam ateando, quatro soldados do pelotão de execução percorriam as filas dos supliciados, partindo-lhes metodicamente as tíbias, estes usavam barras de ferro. Séforis ardeu toda, de ponta a ponta, enquanto, um após outro, os crucificados iam morrendo. O carpinteiro, chamado José filho de Heli, era um homem novo, na flor da vida, fizera há poucos dias trinta e três anos.