Quando esta guerra acabar, e não tarda, que já a estamos vendo em seus derradeiros e fatais estertores, far-se-á a contagem final dos que nela perderam a vida, uns tantos aqui, uns tantos além, uns mais perto, outros mais longe, e, se é certo que, com o correr do tempo, o número daqueles que foram mortos em emboscadas ou batalhas campais acabou por perder importância ou esquecer de todo, já os crucificados, à roda de uns dois mil, segundo as estatísticas mais merecedoras de fé, permanecerão na memória das gentes da Judeia e da Galileia, a ponto de ainda deles se falar bastantes anos depois, quando um novo sangue for derramado em nova guerra. Dois mil crucificados é muito 55
José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
homem morto, mas mais haveriam de parecer-nos se os imaginássemos plantados a intervalos de um quilómetro ao longo duma estrada, ou rodeando, é um exemplo, o país que há-de chamar-se Portugal, cuja dimensão, na sua periferia, anda mais ou menos por aí. Entre o rio Jordão e o mar, choram as viúvas e os órfãos, é um antigo costume seu, para isso mesmo é que são viúvas e órfãos, para chorarem, depois é só esperarmos o tempo de os meninos crescerem e irem à guerra nova, outras viúvas e outros órfãos virão tomar-lhes a vez, e se entretanto mudaram as modas, se o luto, de branco, passou a ser negro, ou vice-versa, se sobre os cabelos, que antes eram arrancados, se põe agora uma mantilha bordada, as lágrimas, quando sentidas, são as mesmas. Maria ainda não chora, mas na sua alma já leva um pressentimento de morte, pois o marido não voltou a casa e em Nazaré diz-se que Séforis foi queimada e há homens crucificados. Acompanhada do filho primogénito, Maria repete o caminho que José fez ontem, com toda a probabilidade, num ponto ou noutro, pousa os pés nas marcas das sandálias do marido, não é estação de chuva, o vento não passa duma brisa suave que mal toca o solo, mas já as pegadas de José são como vestígios de um antigo animal que tivesse habitado estas paragens numa extinta era, dizemos, Foi ontem, e é o mesmo que dizermos, Foi há mil anos, o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar. Com Maria e Jesus vão moradores de Nazaré, alguns impelidos pela caridade, outros só curiosos, e há também uns vagos outros parentes de Ananias, mas esses regressarão às suas casas com as dúvidas com que saíram delas, como não o encontraram morto, bem pode ser que esteja vivo, não se lembraram de ir procurar nos escombros do armazém, e, se se lembrassem, quem sabe se reconheceriam o seu morto entre os mortos, todos o mesmo carvão. Quando, a meio do caminho, estes nazarenos se cruzaram com uma companhia de soldados enviada à sua aldeia para buscas, alguns voltarão para trás, preocupados com a sorte dos seus haveres, que nunca se pode prever o que farão soldados a quem, tendo batido eles à porta duma casa, de dentro ninguém lhes respondeu. Quis saber o comandante da força o que ia fazer aquela caterva de rústicos a Séforis, responderam-lhe, A ver o fogo, explicação que satisfez o militar, pois desde a aurora do mundo sempre os incêndios atraíram os homens, há mesmo quem diga que se trata de uma espécie de chamamento interior, inconsciente, uma reminiscência do fogo original, como se as cinzas pudessem ter memória do que queimaram, assim se justificando, segundo a tese, a expressão fascinada com que contemplamos até a simples fogueira a que nos aquecemos ou a luz duma vela na escuridão do quarto. Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido. Maria, embora com uma casa cheia de filhos deixados sem protecção, não voltou atrás, mas vai, ainda assim, relativamente descansada, pois não é todos os dias que numa aldeia entram soldados de peito feito a matar crianças, sem contar que estes nossos romanos, no geral, não só lhes permitem como até as animam a crescer quanto possam, e então logo se vê, depende de terem dócil o coração e em dia os impostos. Já vão sozinhos na estrada a mãe e o filho, os da família de Ananias, por serem uma meia dúzia e virem de conversa, foram-se ficando para trás, e como Maria e Jesus nada mais teriam para dizer-se que palavras de inquietação, o resultado é ir cada um deles calado para não afligir o outro, e o estranho silêncio que parece cobrir tudo, não se ouvem cantar aves, o vento parou de todo, apenas o rumor dos passos, e até este se retrai, intimidado, como um intruso de boa-fé que entra numa casa deserta. Séforis apareceu de repente na última volta da estrada, algumas casas ainda a arder, ténues colunas de fumo aqui e além, paredes enegrecidas, árvores de alto a baixo queimadas mas conservando a folhagem, agora cor de ferrugem. Deste lado, à nossa mão direita, as cruzes. Maria largou a correr, mas a distância é demasiada para que possa vencê-
la de um fôlego, não tarda que abrande a carreira, com tantos e tão seguidos partos o coração desta mulher facilmente desfalece. Jesus, como filho respeitador, quereria acompanhar sua mãe, estar ao lado dela, agora e lá adiante, para gozarem juntos a mesma alegria ou juntos sofrerem o mesmo desgosto, mas ela avança tão devagar, custa-lhe tanto mexer as pernas, assim nunca mais chegamos, minha mãe, ela faz um gesto que significa, Se queres, vai tu, e ele, cortando através do campo, para atalhar caminho, lança-se numa corrida louca, Pai, pai, di-lo com a esperança de que ele ali não esteja, di-lo com a dor de quem já o encontrou. Chegou às primeiras filas, alguns crucificados ainda estão 56